Estamos
neste fim de mês refletindo nos 14 anos de ausência insubstituível de Nise da
Silveira
(15/02/1905-30/10/1999).
Aproveitaremos
para publicar alguns artigos escritos em sua Homenagem e pertinentes à Casa das Palmeiras. Em particular textos de
pessoas que trabalharam efetivamente com os clientes na Casa e deram seu testemunho - publicados na revista Quaternio Nº8/2001.
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Imagem da consciência
Lygia Franklin de Oliveira
Há uma semana estávamos reunidos na nossa assembleia na Casa das
Palmeiras, chamada Clube Caralâmpia. Este é um espaço democrático onde clientes
e equipe terapêutica discutem problemas, são feitas críticas, sugestões e
deliberações. Um cliente antigo e muito querido, M. A., pediu a palavra. Fez um
relato de uma recente experiência que, para outras pessoas, talvez seja
plenamente aceitável e “normal”. M. A.
concluiu que até mesmo os médicos são preconceituosos em relação ao doente que
tem uma história psiquiátrica. Contou-nos que, no ano passado, havia
desenvolvido um quadro de pneumonia e procurado tratamento. Este foi
prolongado, e M. A. começou a perceber que o médico não levava em consideração
o que ele falava, embora o estivesse fazendo com objetividade e coerência. O
médico procurava sempre a confirmação ou informações advindas de seus familiares.
M. A. sentiu-se profundamente humilhado. Veio compartilhar sua dor conosco, dizendo
que esta era a pior de todas. Na sua avaliação, se os próprios médicos não
conseguem estabelecer um contato respeitoso com o cliente psiquiátrico, o que
dirá o restante da sociedade?
Nise da Silveira criou a Casa das Palmeiras como “um pequeno território livre” onde os clientes têm liberdade de
expressão e encontram uma equipe que, sobretudo, valoriza a sua dignidade, respeita
as singularidades e tem credibilidade pelo que cada um traz e sente. Uma equipe
que procura construir pontes alicerçadas na sinceridade e no respeito entre si
e os clientes. Tudo isso, a terapêutica ocupacional constitui-se o laborioso
caminho de volta à reinserção social.
No mesmo dia em que M. A. contou-nos a sua história, outro cliente, M.,
explicou-nos que considera o ambiente da
Casa das Palmeiras, de uma “inocência exagerada”. Definiu-o assim porque
sabe que este mesmo ambiente não existe no mundo do lado de fora - duro e marcado
por incompreensões. Mas M. afirmou de maneira convicta que é justamente desta “inocência exagerada” que uma pessoa que
mergulho profundamente no seu inconsciente e experienciou todas as amarguras afetivas,
sociais e médicas advindas deste mergulho, necessita para se recuperar. As
dores e o sofrimento são tão intensos que só uma atmosfera semelhante à Casa
das Palmeiras poderá trazê-lo de volta. Segundo M. é essencial que a pessoa
recupere a confiança e a segurança através de uma experiência vivida. Esta é a
sua única chance de retorno, geralmente constitui-se o oposto oferecido pelo
mundo externo, que cada vez mais prioriza a competitividade e o sucesso
objetivo.
Não é difícil reconhecer o grande abismo entre os depoimentos de M. A. e
M. e o que acontece na maioria dos serviços de saúde - psiquiátrica ou não. Geralmente
o doente é pouco ouvido e não é levado a sério. O próprio sistema de saúde os
trata como seres que não têm nada a dizer. Comumente a maior preocupação é
mantê-los sob controle e silenciosos. Configuram-se aqui o autoritarismo, a
visão reducionista e o preconceito, qualidades tão avessas à ciência.
Guardo uma linda imagem da Doutora (assim a chamamos carinhosamente na
Casa das Palmeiras), como símbolo opositor de tudo aquilo que descrevi através
dos depoimentos de M.A e M.: Nise no chão,
de joelhos, observando durante horas e horas os trabalhos dos clientes,
tentando compreender, decifrar os mistérios ocorridos na alma de pessoas sofridas e quase sempre desqualificadas
pela sociedade. Uma mulher numa atitude verdadeiramente religiosa, absorta e
totalmente dedicada. Algumas vezes ouvi falar sobre este seu hábito de
estudo e percebi que ele era tradutor de sua reverência e reconhecimento pelo
manancial de riquezas interiores dos seus clientes. Foi esta atitude que marcou
e fez o diferencial de toda a sua obra, possibilitando a recuperação de
existências, esperanças e sonhos onde o senso comum é o científico, em
princípio se diagnosticam como irrecuperáveis.
Nise encarnou a síntese que unifica o arguto olhar científico ao gesto
humano e amoroso. Vivemos numa época de incrível avanço tecnológico, mas essa
síntese ainda não foi conquistada. Dela somos carentes. Falar de Nise é como
falar do mar ou das estrelas. Não dá, não cabe, é grande demais. Mas acredito
que a imagem de joelhos no chão tenha a força e a beleza capazes de inspirar um
número cada vez maior de profissionais de saúde, não como ideologia intangível,
mas como uma atitude terapêutica vital e transformadora.
Nota
– o negrito é nosso.
Texto de Lygia Franklin de Oliveira,
médica na Casa das Palmeiras, por ocasião do falecimento de Nise da Silveira
(1905-1999). Homenagem / Quaternio / 2001 – pág. 133. Revista Nº 8 do Grupo de
Estudos C. G. Jung.
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