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quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Léon Bonaventure sobre NISE


Joias que oferecemos aos leitores
Na revista Quaternio, nº 8, Homenagem Nise da Silveira – Grupo de Estudos C. G. Jung, 2001, Rio de Janeiro - o terapeuta Leon Bonaventure, belga, Doutor em Psicologia, vivendo no Brasil, São Paulo, , escreveu belo testemunho que publicamos, na íntegra, com o seu consentimento.
Léon - importante divulgador dos fios da psicologia analítica de Jung.

Bandeirante do mundo interior desconhecido
Léon Bonaventure

          Em 22 de março de 1967, durante o tempo da escala do navio Eugênio C no Rio de Janeiro, Jette, minha esposa, e eu tivemos o nosso primeiro encontro com o Brasil ao visitar a Dra. Nise da Silveira.
Ao sair da casa dela precisei de um longo tempo para me situar em relação ao impacto que esse encontro tinha me deixado.
          A Terra Mãe brasileira tem dado à luz grandes mulheres que marcaram e transformaram o Brasil, isto logo percebemos e Dra. Nise da Silveira, sem dúvida, foi uma delas.
          Antes de conhecê-la pessoalmente, já na Suíça, sabia que era uma psiquiatra muito considerada pelo próprio Dr. Jung que a tinha elogiado pelo seu “grande valor”.
          Suas pesquisas e observações, o imenso material colecionado do mundo imaginário de seus pacientes, “as imagens do inconsciente”, foi uma contribuição preciosa para termos uma nova compreensão do mundo da psicose e da psicologia em geral do ser humano.
          Essas imagens, quaisquer que sejam, quando são expressões espontâneas, devem ser consideradas como fotografias vivas do mundo interior no qual vivemos e com o qual tão facilmente nós nos identificamos. Em casos extremos somos submergidos no mundo dessas imagens, chegando a perder o contato com a realidade empírica do mundo quotidiano e com a nossa própria identidade; esses casos extremos geram o que na psicologia moderna chama-se psicose, pessoal (individual) ou coletiva.
          Como psiquiatra do Hospital Psiquiátrico Engenho de Dentro, atendendo principalmente indigentes, Dra. Nise da Silveira sabia mais do que qualquer um de nós, que a única maneira de aliviar o sofrimento e o drama interiores de seus pacientes era ajudá-los a tentar se relacionar com essas forças interiores que se expressam sob forma de imagens.
          Permitir ao inconsciente se expressar através da pintura (por exemplo) poderia ser o primeiro passo para dar forma e objetivar a realidade interior das pessoas submergidas no mundo das imagens: forma de criar condições para restabelecer a relação sujeito-objeto. O grande interesse que Nise da Silveira tinha para as imagens do inconsciente, quer fossem sonhos, pinturas ou esculturas, não era antes de tudo estético, mas existencial pois tinha a necessidade de compreender a situação de seus pacientes aonde eles estavam consigo mesmo.
          Como se sabe, que não existe desenvolvimento sem relacionamento com o outro, a aprendizagem de se relacionar com as imagens interiores passa necessariamente e durante um longo tempo, pelo intermediário do relacionamento com o outro. Mas, quando a relação de confiança primordial foi gravemente afetada, ou mesmo destruída, como parece ser muitas vezes o caso dos psicóticos, a relação existencial com o psicoterapeuta se torna quase estéril ou simplesmente impossível. O que fazer? Há muito tempo, a Dra.Nise fez uma observação de grande implicação terapêutica quando ela observou que o único relacionamento que certos pacientes seus chegavam a estabelecer de maneira espontânea era com animais. Assim, um cachorro, um gato, um pássaro de estimação ou um cavalo, podiam constituir um intermediário entre o paciente, o psicoterapeuta e o mundo exterior.
          Um dia eu acompanhei Dra. Nise numa visita a seus pacientes e qual não foi minha grande surpresa de ver que um certo contato humano com a Dra. Nise se estabeleceu através de um dos cachorros que andavam com ela. Volta-me ainda a imagem do cachorro se aproximando de seu paciente indigente, totalmente apático, perdido em seu mundo abismal, e começando a lamber o rosto dele. Nesse momento se podia perceber como um esboço de um brilho humano, e ver o paciente crônico começar a conversar com a Dra. Nise. Nesse momento era como se pudesse haver um início de volta ao mundo da dignidade humana; bem aventurado cachorro!
          A vida de Nise da Silveira foi uma vida dedicada incondicionalmente a aliviar o sofrimento dos mais pobres, presos nas entraves das forças gigantescas do mundo inconsciente. Claro que não é possível salvar alguém que se está afogando em alto mar ficando simplesmente a olhar da praia – é preciso mergulhar e, junto com o desesperado procurar se confrontar com forças maiores que se encontram nele mesmo e que de certa maneira o dominam. De qualquer jeito qualquer que seja o preparo e a boas intenções de salvar a vida, é preciso que quem mergulhe tenha um amplo conhecimento do mar, e também que saiba evocar os deuses e os santos para serem favoráveis que tudo se passa sob “uma boa estrela”. Não importa qual seja a ajuda, mas é preciso ser amparado tanto por uma força superior, como estar ancorado no mundo para não afogar junto com o outro.
          Nise da Silveira encontrou essa força na figura de Jung. Tanto em seus escritos quanto, na forte relação de simpatia que tinha com ele. Ela me disse que quando o encontrou, foi como se tivesse encontrado um ponto de referência estável. Foi um parceiro de viagem ideal para navegar nesse mar agitado do Inconsciente.
          A grandeza dessa mulher que foi a Dra. Nise, que, porém era de aparência miúda, foi ela ter sido animada pelo mesmo espírito que Jung. Era uma paixão para penetrar neste mundo que tomava conta deles. Viveram com todas as suas implicações o grande Espírito que nos anima e que dá à grandeza vida sua grandeza.
          Nise da Silveira faz parte da geração dos pioneiros da Psicologia Moderna: uma verdadeira bandeirante do mundo interior desconhecido. Esse novo mundo está sendo esbravejado, mas é infinitamente maior e mais rico do que a terra das Américas esbravejada pelos bandeirantes. Precisa, no entanto ser humanizado e habitado.
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