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sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Carlos Drummond escreve sobre Nise da Silveira

          Em 1975, nosso grande poeta - escritor e pensador - Drummond de Andrade se colocou em total apoio à mestra e precursora Dra. Nise da Silveira, em razão da preservação da Obra desta admirável mulher, acima de seu tempo. 
 - Nise da Silveira (15/02/1905 - 29/10/1999) 

                             A  Doutora  Nise*
                                Carlos Drummond de Andrade

       Há visível engano nos registros burocráticos referentes à funcionária federal, Nível 22-A, Dra. Nise da Silveira. Segundo os papéis oficiais, a aludida servidora atingirá, no próximo dia 10 de janeiro, a idade-limite que determina aposentadoria compulsória. A contagem deve estar certa, se baseada em certidão de nascimento. Mas cumpre excluir do total 15 meses em que a Dra. Nise não trabalhou nem viveu a vida normal, pois esteve presa. Seria justo descontar-lhe da idade esse tempo vazio, por um lado, e cheio de angústia, por outro. Graciliano Ramos, nas Memórias do Cárcere, dá testemunho da passagem da Dra. Nise pelo túnel da prisão política, de resto injusta, pois o Tribunal de Segurança acabou por absolvê-la de imaginários crimes. Não lhe  restituiu, porém, o ano e tanto de vida sequestrada, durante o qual, no dizer de Graciliano, fugia-lhes às vezes a  palavra e um desassossego verdadeiro transparecia no rosto pálido, os grandes olhos moviam-se tristes. Atravessando o túnel, era como se ela não existisse mais, tanto que, classificada em 4º lugar no concurso, viu nomeados todos os candidatos até o 3º lugar, com exclusão de sua pessoa. Nise na compulsória? Corrijam os números, senhores escriturários, pois tudo isso conta, e muito, existencialmente.
    Não contou foi no íntimo de Nise da Silveira, para torná-la criatura amarga e revoltada, que daí por diante abominasse o gênero humano. Pelo contrário. Restituída à atividade médica especializada, em cargo público que na aposentadoria lhe proporcionará os proventos de Cr$ 1 mil 740, dedicou-se a uma obra em que o interesse científico é amalgamado com o interesse humano, e toda pesquisa envolve amor ao ser – o ser distanciado da imprecisa fronteira do normal - o fechado em si, o supostamente ininteligível, o  esquizofrênico. Nise debruçou-se sobre a mente cheia de mistério dos que não participavam do nosso modo comum de viver e exprimir-se, e em cerca de 30 anos de observação, estímulo e carinho, extraiu deles alguma coisa profundamente comovedora e de enorme interesse psicológico.
    Seu Serviço de Terapia Ocupacional abriu um caminho para a interpretação de valores obscuros, em potencial no espírito atormentado: o caminho da criação artística. Sem pretensão de formar criadores no sentido que lhes atribui a disciplina estética. Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou aniquilamento: perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando mais transparente em suas grutas interiores.
    Resultado desse trabalho que seduziu outros psiquiatras e discípulos, levando-os a cooperar com a frágil e forte pessoa de Nise, é o Museu de Imagens do Inconsciente, sobre cuja sorte pairam hoje interrogações: não o estando ainda integrado legalmente na estrutura do Ministério da Saúde, embora portaria ministerial de 1973 lhe reconhecesse a existência, que será dele, com a aposentadoria de Nise? Irá vegetar, marcar passo, regredir, acabar melancolicamente?
    Para evitar que isto aconteça, fundou-se a sociedade Amigos do Museu de Imagens do Inconsciente. Não é comum ver-se um funcionário que se aposenta suscitar iniciativa dessa ordem para preservar-lhes as realizações no serviço público. Deve ser mesmo caso único. Para se justificarem como entidade, os amigos do Museu, que são os amigos de Nise, precisam ficar atentos e ativos, não deixando que tal instituição seja roída pela indiferença burocrática. Os museus não valem como depósitos de cultura ou experiência acumuladas, mas como instrumentos geradores de novas experiências e renovação. Só assim deve ser  entendido o maravilhoso acervo de obras recolhidas ao museu que é alma e vida de Nise.
    Do contrário, é o caso de apelar para sua criadora, esquecendo-lhe a aposentação compulsória, no verso do cantor maranhense:
   Nise? Nise?  Aonde estás? Aonde? Aonde?

 *Jornal do Brasil, 4 de janeiro de 1975.
www.carlosdrummond.com.br
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