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domingo, 27 de outubro de 2019

Relato de Abraham Palatnik sobre Nise da Silveira

        Dando continuidade às homenagens à querida e inesquecível Nise da Silveira
- 15 de fevereiro de 1905 - 29 de outubro de 1999 - Relato memória - artista plástico   
                                         Abraham Palatnik

      O primeiro contato que tive com os artistas do Centro Psiquiátrico do Engenho de Dentro ocorreu em 1948, por intermédio de Almir Mavignier, e teve para mim importante e surpreendente desdobramento, De um lado, recepção carinhosa da Dra. Nise da Silveira, apresentando-me os artistas e seus trabalhos, ao mesmo tempo que explicava o espírito e a filosofia de sua atuação; do outro, minha absoluta perplexidade diante daquilo que estava presenciando. Foi um impacto que demoliu minhas ideias e convicções em relação à arte.
     Embora tivesse apenas 20 anos de idade, considerava-me um artista consciente, coerente e seguro daquilo que fazia. Diante dos trabalhos de Emygdio, Raquel, Carlos, Diniz, Isaac e outros, entretanto, tiveram a prova e percebi a extraordinária riqueza e potencial criativo imerso em seus subconscientes, e inevitavelmente comecei a comparar e questionar profundamente aquelas minhas convicções à luz da criatividade espontânea desses artistas. A confiança no meu aprendizado e atuação durante quatro anos num ateliê livre de artes plásticas estava desmoronando. A coerência estava com Diniz, com Carlos, com Emygdio; a poesia com Raquel, com Isaac. Fundiam-se imagens e linguagem. Os elementos determinantes da figura e da cor não obedeciam a critérios escolares de composição, sendo na verdade, regidos por códigos outros, relacionados às forças poderosas advindas do inconsciente, códigos esses que viriam a ser exaustivamente estudados e decifrados por Dra. Nise.
      Fascinado e desnorteado, fui pouco a pouco percebendo a importância de conhecer e compreender outros aspectos da forma e da percepção que não aquelas tradicionais, e através do precioso contato com Mário Pedrosa terminei por concluir que era na essência da forma que se armazenava o potencial para atingir os sentidos, cabendo ao artista, enfim, disciplinar a ordem e o caos. A partir daí, desencadeei pesquisas e experiências no campo da luz e do movimento, visando resultados estéticos fora dos padrões usuais e das técnicas consagradas.
    Até hoje me surpreendo, enfim, com a eloquência dos princípios estéticos dos artistas do Centro Psiquiátrico do Engenho de dentro, e com a incontestável autenticidade e beleza de seus trabalhos. Por não estarem contaminados com tendências, influências, receitas e teorias, e a despeito de sua esquizofrenia - e mesmo de uma certa forma beneficiados por ela, por que não dizer! – estamos livres para usar em sua obra aquela fantástica, poderosa e até então aprisionada riqueza de vivências e imagens, com seus símbolos e arquétipos, emergindo do inconsciente com a força, superioridade e presença suficientes para suprir a necessidade vital de se comunicar.

Depoimento publicado na revista Quaternio de 2001 - Grupo de Estudos C. G. Jung / Homenagem à Nise da Silveira.
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3 comentários:

Unknown disse...

Grande ser humano, dra. Nise da silveira, com olhar voltado para as entranhas que cada um carrega impresso na alma. Uma verdadeira guerreira

Unknown disse...

Maravilhoso

Caminhartes Arteterapia disse...

Excelente!