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quinta-feira, 26 de junho de 2014

Olhares -O olhar da poesia


                    O olhar da poesia
         
          Pela multiplicidade de olhares possíveis, escolhi falar do diálogo na interface Literatura/Loucura/Artes Plásticas. Daí, em rápidas pinceladas, fiz três recortes, tendo a poesia como fio condutor: “O olhar na Casa das Palmeiras”, “O olhar do poeta”, “O olhar de Van Gogh”.  
                           
        1ª parte: O olhar na Casa das Palmeiras – Grupo de Poesia
         Faço o primeiro recorte para comentar a Poesia na Casa das Palmeiras.
         O grupo se reúne na quarta segunda-feira de cada mês. Além da presença dos clientes, contamos com a participação de estagiários e, eventualmente, de coordenadores de outras áreas e do presidente da Casa.
         Em abril de 2004, participei, pela primeira vez, como coordenador do Grupo de Poesia, dando seguimento à atividade.
         A cada reunião, distribuímos, aos participantes, algumas laudas digitadas, quase sempre contendo fotos e pequenas biografias dos poetas que vamos estudar, junto com alguns dos seus textos mais representativos. O coordenador lê as biografias e faz comentários, incentivando a participação. As poesias são lidas por todos os presentes, que, em diálogo com o coordenador, fazem suas observações. Os clientes são motivados a dizer se gostaram ou não e por qual razão. Tentam responder à célebre e irrespondível pergunta: O que será que o poeta quis dizer?
         Vamos chamando a atenção para alguns tópicos que abordamos de forma bem simples, objetivando o entendimento de todos: Rimas, Métrica, Ritmo, Formas fixas,  entre outros.
         Uma palavra ou trecho de um poema é escolhido para que cada cliente faça o seu poema: é o “tema do dia”, já presente em parte do material distribuído (exemplos: “Amigo”, “Céu”, “Espelho”, “Nuvem”, “Sonho”, “No meio do caminho tinha uma pedra”); algumas vezes uma imagem serve de tema, como um desenho, uma fotografia etc.; em muitas ocasiões a escolha fica a critério do grupo.
        Ao final, é dado um tempo (em torno de 10 a 15 minutos). Eles escrevem, e depois cada um lê o seu texto. Ao analisá-los, buscamos o envolvimento de todos, incentivando para que comentem o próprio trabalho e também o do outro.
         Os trabalhos são assinados, datados e arquivados na Casa, ficando disponíveis para pesquisas e com possibilidade de auxílio a tratamentos futuros.
        Algumas vezes, convidamos um poeta para fazer palestra. Já estiveram conosco Afonso Henriques Neto, Geraldinho Carneiro, Eduardo Tornaghi, Antonio Carlos Secchin, Suzana Vargas, entre outros.
        A Atividade, como um todo, visa fazer com que os clientes se expressem, se comuniquem, seja por escrito ou verbalmente.
        Nesses 10 anos de convivência, lidando com pessoas com maior ou menor dificuldade para se expressar, pude constatar que o cliente da Casa não difere muito de outras pessoas. Concentra-se na hora de escrever seus textos; alguns fazem ótimos poemas, outros produzem encantadoras mensagens em prosa e até, com certa frequência, desenhos bem elaborados, demonstrando grande sensibilidade. E é essa sensibilidade que faz com que ele se comporte, frente à Poesia, da mesma maneira que o poeta.
        De modo geral, o cliente da Casa tem o olhar e o sentimento que o poeta precisa ter, às vezes traduzindo o ambiente que nos cerca, o exterior, e num outro momento, mergulhando no seu mundo interior para se expressar singularmente.

         2ª parte: O olhar do poeta
         
         Cabe a pergunta: Como ocorre o processo de criação? Uma palavra, um filme, um acontecimento de rua, um cheiro, um livro, um quadro: o acaso, a emoção, o espanto, uma dor, a magia do olhar. Tudo pode disparar o processo.
         Muitas vezes, o poema é a tentativa de capturar as imagens. O poeta olha as coisas como se apresentam e imagina como poderiam ser.
         Aqui, faço um recorte para falar de dois poetas: Gullar e Drummond.
         Ferreira Gullar, poeta, cronista, dramaturgo, crítico de arte, tradutor e biógrafo de Nise da Silveira, disse na introdução de seu livro Relâmpagos (na capa, foto do rosto do autor, destacando o olho): “Toda obra de arte atinge nosso olhar como uma inesperada fulguração, um relâmpago. Atrevi-me algumas vezes a tentar fixar esse relâmpago em palavras”. Na página 142, ele nos dá um exemplo de Literatura dialogando com Artes Plásticas. Olhando para uma tela do pintor mineiro Carlos Bracher, escreveu o poema:

Pintura

Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos.

         Carlos Drummond de Andrade tem vários trabalhos com o tema Artes Plásticas. Um exemplo interessante é o conjunto de 21 poemas intitulado Quixote e Sancho, de Portinari. Os textos foram compostos para acompanhar os desenhos executados por Cândido Portinari, que compõem o álbum Dom Quixote, inspirado nas aventuras do famoso cavaleiro andante.
         Do diálogo entre Cervantes, Portinari e Drummond, cria-se um olhar circular, se é que podemos dizer assim, sobre o conjunto Literatura/Artes Plásticas/Literatura.      
         Destaco o poema XI:

Disquisição na insônia

Que é loucura: ser cavaleiro andante
                ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?

O que, acordado, sonha doidamente?
                 O que, mesmo vendado,
                 vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou ― que doideira ― um louco de juízo.
                           
        3ª parte: O olhar de Van Gogh

         Depois de passar rapidamente pelo olhar múltiplo do poeta Ferreira Gullar, pelo do gênio Miguel de Cervantes, pelo do grande pintor Cândido Portinari e pelo do maior poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, chego ao “Olhar de Van Gogh”. Também aqui fiz uso do recorte para dialogar com a visão, ou melhor, com os olhares de dois escritores sobre o olhar de Van Gogh: José Castello e Antonin Artaud.
         Quando esta folha ainda estava em branco, perguntei a mim mesmo: o quê e como falar de Van Gogh?
         Que Van Gogh nasceu em 1853 e suicidou-se aos 37 anos de idade, é apenas uma informação já tantas vezes divulgada. Que tinha um olhar privilegiado, todo mundo sabe. Que foi um gênio das Artes Plásticas e nas suas pinturas nos legou poesia no mais puro estado, também não é novidade.  Então, como falar de Van Gogh, em pleno século XXI, quando tudo, aparentemente, já foi dito sobre ele? E, ainda mais, neste curto espaço de tempo (20 minutos). Tinha que ser alguma coisa nova ― quase uma impossibilidade ―, nem que fosse uma ficção, e foi. Por acaso, e o acaso existe, encontrei na coluna do José Castello, no Caderno Prosa, do Globo, de 24/05/2014 o texto “Nasce Van Gogh”. Com ele, Castello tenta responder a algumas questões: Como nasce a arte? De onde veio a pintura de Vincent Van Gogh? De qual empurrão, de qual susto? Perguntas que muitos de nós frequentemente nos fazemos.
         O colunista se debruça sobre o livro Todas as cores do mundo, do jovem escritor italiano Giovanni Montanaro, que eu nunca tinha ouvido falar, mas que agora se junta ao quarteto Gullar, Cervantes, Portinari e Drummond. E a história me encantou. É um romance, narrado na primeira pessoa, em forma de carta ao pintor holandês escrita pela jovem Teresa Senzasogni, que traduzido seria Teresa Sem Sonhos. Ela herdou o nome da mãe, que não conseguia dormir, nunca dormia, e por isso passou a ser chamada de Sem Sonhos.
           Teresa vivia na pequena cidade de Gheel, no norte da Bélgica, uma vila de 3 mil habitantes, dos quais cerca de mil eram loucos. As famílias foram incentivadas a adotar os loucos para lhes dar um destino. Teresa, ela própria filha de uma mulher considerada louca, e embora absolutamente lúcida, é adotada pelos Vanheim. Para facilitar os procedimentos de adoção, os pais atestam sua suposta loucura.
        E como Van Gogh entra na história? Assim: por acaso, vagando pelo campo, um dia, sem querer, ele chega a Gheel. Naquela tarde, era esperada a chegada de um novo louco. Um acidente na estrada impediu, porém, que ele prosseguisse viagem. O jovem Van Gogh toma seu lugar. Ela, aos 16 anos, conhece Vincent. Castello nos diz: “Por ele se apaixonou e, por força desse amor, o levou a trocar seus desenhos escuros pela arte luminosa e cheia de cores que hoje conhecemos”. Digo eu: mudou o olhar.
         Continua o colunista: “Teresa percebe a sua genialidade, mas também o passo que falta para chegar até lá”. A jovem confessa ao amigo: “Eu me espanto com a quantidade de cores que existem”. E o convence a experimentá-las ― levíssimo empurrão que impulsiona Van Gogh para sua arte.  Ela lhe dá a primeira tela e o primeiro conjunto de tintas coloridas. Vincent diz: “Você é bem estranha, Teresa”. Ela reage: “E o senhor?” Van Gogh medita calmamente: “Não me importo por ser estranho”. A jovem conclui: “Eu também não. Percebe como somos iguais?” Teresa lembra que lhe disse: “Em minha opinião o senhor será pintor”.
         Castello nos diz: “O que há de mais comovente na história de Giovanni Montanaro é a inocência”.  Teresa, mesmo sem saber, impulsiona Vincent para o seu destino. Leva-o a descobrir que o importante não é reproduzir a natureza, mas pintar aquilo que se descortina em sua mente. Nas entrelinhas, percebe-se que Teresa tem o olhar voltado para as coisas mínimas do afeto. Van Gogh declara: “Não me importa que a cor seja exatamente aquela que vejo, desde que fique bonita na tela, tanto quanto na natureza”. E é assim que ele consegue, com sua genialidade, colocar uma poesia visceral em suas pinturas.
         Trazendo o olhar do artista para o primeiro plano, José Castello consegue responder à pergunta inicial, “Como nasce a arte?” Conclui de forma sucinta: “Dessa ruptura, em que o olhar do artista se torna mais forte que qualquer outro elemento, a arte enfim nasce”.
         E para encerrar minha fala, recorro a Antonin Artaud, um dos maiores conhecedores da alma do pintor holandês. Poeta, ator, dramaturgo e diretor de teatro, ele é o autor de Van Gogh: o suicida da sociedade, traduzido por outro poeta, Ferreira Gullar. O olhar do pintor atravessa o livro, da capa à contracapa, com a foto de seus olhos, e percorre todo o texto nas palavras de Artaud. Na página 89, o autor afirma: “O olhar de Van Gogh é pendente, fixo, ele é vítreo atrás das pálpebras curtas, das sobrancelhas estreitas e sem nenhuma ruga”.
         Volto para a página 88, onde Artaud se indaga e provoca:
         “Um louco, Van Gogh?”
         Ele mesmo responde:
         “Aquele que soube um dia olhar um rosto humano, olhe o autorretrato de Van Gogh, penso naquele com um chapéu de feltro.
         Pintada por Van Gogh extralúcido, esta figura de carniceiro ruivo que nos inspeciona e espia, que nos perscruta também com um olho feroz.
         Não conheço um só psiquiatra capaz de perscrutar um rosto de homem com uma força tão esmagadora e destrinchá-lo com infalível psicologia”.
         E para concluir, o autor cobre de elogios e compara Vincent Van Gogh a um grande filósofo:
         O olho de Van Gogh é de um grande gênio, porém a maneira como o vejo dissecar-me do fundo da tela em que surgiu não é mais o de um pintor genial neste momento, mas o de um filósofo que jamais encontrei na vida”.
                
                                            Casa das Palmeiras, 7/6/2014

                                           Augusto Sérgio Bastos

Um comentário:

Anônimo disse...

uma das belas atividades da casa das palmeiras.saudades, Luciana