Trechos do artigo de Nise da Silveira
- A esquizofrenia em imagens - Revista do Grupo de Estudos C.G. Jung – QUATERNIO,
1973, pgs.123 a 136.
Como acompanharemos os acontecimentos
da travessia por “estados do ser cada vez mais perigosos?” (Artaud). Ainda que
o manejo da linguagem verbal permanecesse perfeito, esta linguagem
provavelmente seria inadequada para exprimir as vivências nesses outros estados
do ser. Sua esfera de ação é traduzir o pensamento lógico, é construir o
discurso. Já na expressão dos sentimentos experienciados mesmo na faixa da
normalidade, começam os fracassos da linguagem verbal. Todos os namorados sabem
disso. Por este motivo há muitos excelentes prosadores e são raros os grandes
poetas líricos. Também os místicos de todas as religiões sempre afirmaram que
lhes era impossível dizer em palavras aquilo que haviam vivenciado nos
encontros com o Absoluto. Como identificaríamos a gigantesca mulher com cabeça
de cão, que perseguia uma de nossas doentes, em alucinações e sonhos, se ela
não a houvesse pintado? (criadora singular do MII).
No âmbito da psiquiatria cresce cada
vez mais o interesse pela expressão plástica dos psicóticos, utilizada para
esclarecimento diagnóstico, controle da evolução dos casos clínicos, meio para
compreensão da psicodinâmica das vivências mórbidas, como expressão do oculto,
do não verbalizado. A bibliografia referente ao assunto é extensíssima; chega
mesmo a desanimar às vezes os mais entusiastas apaixonados deste campo de
pesquisa.
Há
notáveis estudos sobre as peculiaridades do estilo da pintura de
esquizofrênicos (trabalhos de Ferdiere, Kries, Baynes etc.). Mas a maioria das
publicações refere-se à descoberta de conteúdos do inconsciente por intermédio
do desenho e da pintura.
Quando o neurótico já está em
condições de sair do estado mais ou menos passivo de dependência das
interpretações do analista, Jung o induz à ação – isto é, pede-lhe que desenhe
ou pinte as imagens de sonho que mais o impressionaram. Não se trata de fazer
arte – trata-se, na expressão de Jung, “de produzir uma eficácia viva sobre o
próprio individuo”. “Dar forma material à imagem interna obriga a considerar
atentamente cada uma de suas partes, que poderão deste modo desenvolver toda a
sua força evocadora”. Correntemente, a pessoa detém-se sobre as imagens de seus
sonhos apenas durante a sessão analítica. Logo depois é absorvida no tumulto
cotidiano. As imagens esvaem-se. Outra coisa será tentar captá-las sobre o
papel, lutando contra pincéis e cores e tanto melhor quanto maior for o esforço
e tempo dedicado a este trabalho. O indivíduo necessitará cada vez menos de seu
analista. Se descobre, por sua própria experiência, que a formação de uma
imagem simbólica libera-o de uma condição de sofrimento e o ajuda a galgar
outro nível de consciência, torna-se independente por auto-criação, isto é,
dando forma a suas imagens internas ele se modela simultaneamente a si mesmo.
Desenho e pintura serão usados para
retirar do caos objetos significativos, servindo ao doente de instrumento para
reestruturar o mundo real. Haverá casos, como aqueles citados por Kries, não
duvido, em que o desenho seja utilizado para destruição mágica do mundo.
Entretanto, em muitos outros casos o doente procura, desenhando ou pintando,
reconstruir o mundo real que, para ele, sofreu um verdadeiro abalo sísmico. E
nesse ansioso esforço de reconstrução do mundo externo reestrutura
simultaneamente seu mundo interno.
Quando instalei o setor de desenho e
pintura, em setembro de 1946, entre as atividades da terapêutica ocupacional,
minha intenção era encontrar caminho de acesso aos mundos interiores dos
psicóticos, desde que as comunicações verbais eram tão escassas e precárias,
deixando o médico completamente do lado de fora do muro daqueles mundos fascinantes. Assim, foi surpresa a verificação de que o ato de pintar adquiria, por si mesmo, qualidades terapêuticas. No relatório do ano de 1948, escrevi: " Nossa observação cada vez mais confirma que a pintura não só proporciona estabelecimento para processos patológicos, mas igualmente verdadeiro agente terapêutico". Era uma constatação empírica que continuou a ser confirmada nos anos subsequentes até a data de presente.
~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~~
Nenhum comentário:
Postar um comentário