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quinta-feira, 19 de junho de 2014

Palavras de Nise - a importância das imagens plásticas


          Trechos do artigo de Nise da Silveira - A esquizofrenia em imagens - Revista do Grupo de Estudos C.G. Jung – QUATERNIO, 1973, pgs.123 a 136.

          Como acompanharemos os acontecimentos da travessia por “estados do ser cada vez mais perigosos?” (Artaud). Ainda que o manejo da linguagem verbal permanecesse perfeito, esta linguagem provavelmente seria inadequada para exprimir as vivências nesses outros estados do ser. Sua esfera de ação é traduzir o pensamento lógico, é construir o discurso. Já na expressão dos sentimentos experienciados mesmo na faixa da normalidade, começam os fracassos da linguagem verbal. Todos os namorados sabem disso. Por este motivo há muitos excelentes prosadores e são raros os grandes poetas líricos. Também os místicos de todas as religiões sempre afirmaram que lhes era impossível dizer em palavras aquilo que haviam vivenciado nos encontros com o Absoluto. Como identificaríamos a gigantesca mulher com cabeça de cão, que perseguia uma de nossas doentes, em alucinações e sonhos, se ela não a houvesse pintado? (criadora singular do MII).
           
          No âmbito da psiquiatria cresce cada vez mais o interesse pela expressão plástica dos psicóticos, utilizada para esclarecimento diagnóstico, controle da evolução dos casos clínicos, meio para compreensão da psicodinâmica das vivências mórbidas, como expressão do oculto, do não verbalizado. A bibliografia referente ao assunto é extensíssima; chega mesmo a desanimar às vezes os mais entusiastas apaixonados deste campo de pesquisa.
         Há notáveis estudos sobre as peculiaridades do estilo da pintura de esquizofrênicos (trabalhos de Ferdiere, Kries, Baynes etc.). Mas a maioria das publicações refere-se à descoberta de conteúdos do inconsciente por intermédio do desenho e da pintura.

          Quando o neurótico já está em condições de sair do estado mais ou menos passivo de dependência das interpretações do analista, Jung o induz à ação – isto é, pede-lhe que desenhe ou pinte as imagens de sonho que mais o impressionaram. Não se trata de fazer arte – trata-se, na expressão de Jung, “de produzir uma eficácia viva sobre o próprio individuo”. “Dar forma material à imagem interna obriga a considerar atentamente cada uma de suas partes, que poderão deste modo desenvolver toda a sua força evocadora”. Correntemente, a pessoa detém-se sobre as imagens de seus sonhos apenas durante a sessão analítica. Logo depois é absorvida no tumulto cotidiano. As imagens esvaem-se. Outra coisa será tentar captá-las sobre o papel, lutando contra pincéis e cores e tanto melhor quanto maior for o esforço e tempo dedicado a este trabalho. O indivíduo necessitará cada vez menos de seu analista. Se descobre, por sua própria experiência, que a formação de uma imagem simbólica libera-o de uma condição de sofrimento e o ajuda a galgar outro nível de consciência, torna-se independente por auto-criação, isto é, dando forma a suas imagens internas ele se modela simultaneamente a si mesmo.

          Desenho e pintura serão usados para retirar do caos objetos significativos, servindo ao doente de instrumento para reestruturar o mundo real. Haverá casos, como aqueles citados por Kries, não duvido, em que o desenho seja utilizado para destruição mágica do mundo. Entretanto, em muitos outros casos o doente procura, desenhando ou pintando, reconstruir o mundo real que, para ele, sofreu um verdadeiro abalo sísmico. E nesse ansioso esforço de reconstrução do mundo externo reestrutura simultaneamente seu mundo interno.

          Quando instalei o setor de desenho e pintura, em setembro de 1946, entre as atividades da terapêutica ocupacional, minha intenção era encontrar caminho de acesso aos mundos interiores dos psicóticos, desde que as comunicações verbais eram tão escassas e precárias, deixando o médico completamente do lado de fora do muro daqueles mundos fascinantes. Assim, foi surpresa a verificação de que o ato de pintar adquiria, por si mesmo, qualidades terapêuticas. No relatório do ano de 1948, escrevi: " Nossa observação cada vez mais confirma que a pintura não só proporciona estabelecimento para processos patológicos, mas igualmente verdadeiro agente terapêutico". Era uma constatação empírica que continuou a ser confirmada nos anos subsequentes até a data de presente.
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