Em 1975, nosso grande poeta - escritor e pensador - Drummond de Andrade se
colocou em total apoio à mestra e precursora Dra. Nise da Silveira, em razão da
preservação da Obra desta admirável mulher, acima de seu tempo.
- Nise da Silveira (15/02/1905 - 29/10/1999)
A Doutora Nise*
Carlos Drummond de Andrade
Há
visível engano nos registros burocráticos referentes à funcionária federal,
Nível 22-A, Dra. Nise da Silveira. Segundo os papéis oficiais, a aludida
servidora atingirá, no próximo dia 10 de janeiro, a idade-limite que determina
aposentadoria compulsória. A contagem deve estar certa, se baseada em certidão
de nascimento. Mas cumpre excluir do total 15 meses em que a Dra. Nise não
trabalhou nem viveu a vida normal, pois esteve presa. Seria justo descontar-lhe
da idade esse tempo vazio, por um lado, e cheio de angústia, por outro. Graciliano
Ramos, nas Memórias do Cárcere, dá testemunho da passagem da Dra. Nise
pelo túnel da prisão política, de resto injusta, pois o Tribunal de Segurança
acabou por absolvê-la de imaginários crimes. Não lhe restituiu, porém, o ano e tanto de vida
sequestrada, durante o qual, no dizer de Graciliano, fugia-lhes às vezes
a palavra e um desassossego verdadeiro
transparecia no rosto pálido, os grandes olhos moviam-se tristes.
Atravessando o túnel, era como se ela não existisse mais, tanto que,
classificada em 4º lugar no concurso, viu nomeados todos os candidatos até o 3º
lugar, com exclusão de sua pessoa. Nise na compulsória? Corrijam os números, senhores
escriturários, pois tudo isso conta, e muito, existencialmente.
Não
contou foi no íntimo de Nise da Silveira, para torná-la criatura amarga e
revoltada, que daí por diante abominasse o gênero humano. Pelo contrário.
Restituída à atividade médica especializada, em cargo público que na
aposentadoria lhe proporcionará os proventos de Cr$ 1 mil 740, dedicou-se a uma
obra em que o interesse científico é amalgamado com o interesse humano, e toda
pesquisa envolve amor ao ser – o ser distanciado da imprecisa fronteira do
normal - o fechado em si, o supostamente ininteligível, o esquizofrênico. Nise debruçou-se sobre a mente
cheia de mistério dos que não participavam do nosso modo comum de viver e
exprimir-se, e em cerca de 30 anos de observação, estímulo e carinho, extraiu
deles alguma coisa profundamente comovedora e de enorme interesse psicológico.
Seu
Serviço de Terapia Ocupacional abriu um caminho para a interpretação de valores
obscuros, em potencial no espírito atormentado: o caminho da criação artística.
Sem pretensão de formar criadores no sentido que lhes atribui a disciplina estética.
Sem querer aumentar o catálogo de nossos pintores, escultores, gravadores. Nise
interroga o inconsciente e consegue que dele aflorem as representações
artísticas espontâneas, prova de que nem tudo em seus autores é caos ou
aniquilamento: perduram condições geradoras de uma atividade bela, a serem
devidamente estudadas visando ao benefício do homem futuro, tornando mais
transparente em suas grutas interiores.
Resultado desse trabalho que seduziu outros
psiquiatras e discípulos, levando-os a cooperar com a frágil e forte pessoa de
Nise, é o Museu de Imagens do Inconsciente, sobre cuja sorte pairam hoje
interrogações: não o estando ainda integrado legalmente na estrutura do
Ministério da Saúde, embora portaria ministerial de 1973 lhe reconhecesse a existência,
que será dele, com a aposentadoria de Nise? Irá vegetar, marcar passo,
regredir, acabar melancolicamente?
Para
evitar que isto aconteça, fundou-se a sociedade Amigos do Museu de Imagens do
Inconsciente. Não é comum ver-se um funcionário que se aposenta suscitar
iniciativa dessa ordem para preservar-lhes as realizações no serviço público.
Deve ser mesmo caso único. Para se justificarem como entidade, os amigos do
Museu, que são os amigos de Nise, precisam ficar atentos e ativos, não deixando
que tal instituição seja roída pela indiferença burocrática. Os museus não
valem como depósitos de cultura ou experiência acumuladas, mas como
instrumentos geradores de novas experiências e renovação. Só assim deve
ser entendido o maravilhoso acervo de
obras recolhidas ao museu que é alma e vida de Nise.
Do
contrário, é o caso de apelar para sua criadora, esquecendo-lhe a aposentação
compulsória, no verso do cantor maranhense:
Nise? Nise? Aonde estás? Aonde? Aonde?
*Jornal
do Brasil, 4 de janeiro de 1975.
www.carlosdrummond.com.br
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