Neste período
delicado de pandemia, a Casa das Palmeiras mantem suas reservas necessárias. Eterna presença da
fundadora desta instituição _ Nise da Silveira (15/fev./1905 _ 30/nov./1999) São 22 anos de resistência de uma turma constante aos ideias desta revolucionária e precursora psiquiatra do Brasil. Artigo longo,
entretanto, verdadeira aula para o público em geral, não só os profissionais da
saúde.
A ESQUISOFRENIA EM IMAGENS *
Nise da Silveira
Certamente é benévola concessão do destino que uma pessoa possa fundar
um setor de trabalho, por modesto que seja, e orientar seu desenvolvimento até
vê-lo atingir a idade de vinte e cinco anos. Assim, sinto-me feliz comemorando
o XXV aniversário da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do
Centro Psiquiátrico Pedro II, com a realização deste simpósio, viva
demonstração do interesse que este setor de trabalho desperta nos seus
colaboradores, estagiários e funcionários.
O
simpósio sobre o tema A Esquizofrenia em Imagens está dividido em duas
partes: 1a. Desenho e pintura como Meios de Acessos ao Mundo
Interno, e 2a. Desenho e Pintura como Meios Terapêuticos. Tentarei
uma rápida visão de conjunto sobre estes dois itens, que serão examinados em
detalhe no correr de nossas reuniões.
É
fácil compreender e aceitar que desenho e pintura sejam meios de acesso ao
mundo interno.
“Os
processos de representação que se realizam no outro nunca nos são
acessíveis diretamente, mas apenas nas suas reações psicomotoras e
principalmente através da linguagem ou das artes plásticas”, diz Kretschmer.
Ora,
na condição esquizofrênica o indivíduo esta vivendo estados existenciais
caracterizados principalmente pela intensa polarização da energia psíquica
sobre conteúdos do inconsciente, cisão do curso do pensamento, desligamento do
real.
Ocorrem
consequentemente distúrbios na esfera da linguagem proposicional, sintáxica,
instrumento de expressão do pensamento lógico e abstrato agora cindido.
Torna-se muito difícil, às vezes impossível, a comunicação com o doente por
meio da palavra.
Nos
estados esquizofrênicos frequentemente acontece que noções abstratas sejam
substituídas por séries de imagens. Um doente de Kretschmer via brotarem, de
conceitos abstratos, jorros de imagens. Werner refere casos de esquizofrênicos
que representavam conceitos abstratos por meio de traçados de linhas. Mostra
ilustrações desse tipo que correspondem aos conceitos de igualdade,
desigualdade, amor.
Fernando,
que frequenta nosso atelier, representa a ambição por linhas quebradas, muito
cerradas umas contra as outras. Mostrando-as, disse-me: eu sou ambicioso. Está
mesmo doente, numa pintura a que deu o nome de “árvore das emoções”, revelou um
código da significação das cores que nos pode guiar no estudo de suas pinturas.
Para ele, o amarelo é gloria; o rosa, amor; o branco, ânsia; o marrom, paixão;
o azul profundo, ciúme. Sem a pintura, não saberíamos que aquele homem de
aspecto humilde e face impassível fosse ambicioso, nem que no seu mundo
interno, tivesse raízes a árvore de intensas emoções. (Entre parênteses direi
que o estudo da pintura de esquizofrênicos leva o pesquisador a duvidar de
muitas coisas lidas nos tratados, referentes à esquizofrenia. Exemplo:
embotamento afetivo, apagamento da afetividade, pobreza da ideação, demência.
Isso perturba. E talvez seja um dos motivos porque tão poucos psiquiatras
interessam-se pela produção plástica de seus doentes).
A pintura nos informará sobre as
alterações da percepção. Revelará se o doente perdeu ou não a capacidade de
construir gestalten, se vê as coisas desligadas de seus contextos
pragmáticos, misturadas, justapostas, superpostas, num verdadeiro caos. Informará
sobre a estruturação do espaço, sobre a maneira como ele apreende o mundo. Se o
mundo que vivencia é rígido, estático, ameaçador, instável, sombrio ou
colorido. Se predominar a tendência à abstração, como fuga a um mundo hostil ou
se manifestam tendências à empatia com as coisas e seres do mundo real.
A
pintura nos permitirá acesso a imagens oriundas das profundezas do
inconsciente. Às vezes até parece que essas imagens se projetam nitidamente
sobre cartolinas e telas, e que o pintor apenas contorna-as com o seu pincel,
tanto elas são vivas e fortes, algumas belas, outras terríveis.
Como
acompanharemos os acontecimentos da travessia por “estados do ser cada vez mais
perigosos?” (Artaud). Ainda que o manejo da linguagem verbal permanecesse
perfeito, esta linguagem provavelmente seria inadequada para exprimir as
vivencias nesses outros estados do ser. Sua esfera de ação é traduzir o
pensamento lógico, é construir o discurso. Já na expressão dos sentimentos
experienciados mesmo na faixa da normalidade, começam os fracassos da linguagem
verbal. Todos os namorados sabem disso. Por este motivo há muitos excelentes
prosadores e são raros os grandes poetas líricos. Também os místicos de todas
as religiões sempre afirmaram que lhes era impossível dizer em palavras aquilo
que haviam vivenciado nos encontros com o Absoluto. Como identificaríamos a
gigantesca mulher com cabeça de cão, que perseguia uma de nossas doentes, em
alucinações e sonhos, se ela não a houvesse pintado? Como teríamos podido acompanhar
a metamorfose de Adelina em flor e o longo e sofrido processo de sua
desidentificação vegetal, se ela não o houvesse descrito em imagens?
Como
seguiríamos o labor das forças do inconsciente na formação de símbolos?
Vermos,
por exemplo, passo a passo, a problemática homossexual de um indivíduo ser
trabalhada no inconsciente até que fosse conseguida a aproximação das forças em
conflito numa imagem única, num símbolo de hermafrodita. Sem a pintura tudo
isso nos teria passado despercebido.
E a angústia
de ser espiado de todos os lados por múltiplos olhos? O médico fará ideia muito
mais clara dessa situação de seu doente quando representada numa pintura, do
que se verbalizada em vagas referencias a perseguidores.
E a
tortura daqueles que vivenciam alucinações corporais, que são cortados em
pedaços e desmembrados? Estes nada ou quase nada são capazes de dizer-nos
porque o curso de seu pensamento também está partido, porque a linguagem verbal
foi desmembrada. Mas a linguagem das imagens subsiste, terrivelmente eloquente,
conforme será visto daí a pouco em slides projetados.
Seria
impossível resumir agora o papel do desenho e da pintura na pesquisa
psicológica e psiquiátrica.
No
campo da psicologia infantil é aceita, sem contestação, a importância do
desenho que por si só fornece indicações sobre a idade mental da criança e,
sobretudo sobre sua vida afetiva e seus conflitos. Os desenhos e pinturas
imaginativos, sempre ricos de simbolismo, são muito utilizados na psicanálise
infantil. Lembremos, com respeito, os trabalhos de Sophie Morgenstern. Noutra posição,
F. Minkowska deixa de lado o conteúdo dos desenhos para investigar a maneira
como a criança vê o mundo, seu contato com o ambiente. Suas pesquisas sobre o
desenho infantil (junto a elementos obtidos pelo teste de Rorschach) foram
elaboradas por E. Minkowski que, a partir desses dados, descreveu dois tipos
constitucionais: o tipo racional e o tipo sensorial, propondo uma nova
tipologia.
Vários
testes psicológicos, conforme sabemos, fundamentam-se no desenho. Basta lembrar
o teste da árvore de Koch.
No
âmbito da psiquiatria cresce cada vez mais o interesse pela expressão plástica
dos psicóticos, utilizada para esclarecimento diagnóstico, controle da evolução
dos casos clínicos, meio para compreensão da psicodinâmica das vivencias mórbidas,
como expressão do oculto, do não verbalizado. A bibliografia referente ao
assunto é extensíssima; chega mesmo a desanimar às vezes os mais entusiastas
apaixonados deste campo de pesquisa.
Há
notáveis estudos sobre as peculiaridades do estilo da pintura de esquizofrênicos
(trabalhos de Ferdière, Kries, Baynes, etc.). Mas a maioria das publicações
refere-se a descoberta de conteúdos do inconsciente por intermédio do desenho e
da pintura.
Lembremos,
por fim, muito de passagem, o encontro entre as pesquisas modernas sobre linguística
e as pesquisas relativas à expressão plástica. Estudos recentes de R. Volmat e
Charles Wiart aplicam a analise pictural de esquizofrênicos o método de analise
linguística de Jackobson e Halle, que consiste fundamentalmente na oposição
entre metonímia e metáfora. J. Bobon investiga correspondências entre formas
verbais e formas plásticas, estabelecendo conexões entre neologismos e
neomorfismos, entre paralogismos e paramorfismos.
Verifica-se,
pois, que nas mais diferentes escolas psicológicas e psiquiátricas, tanto
naquelas que valorizam sobretudo os conteúdos intrapsíquicos, quanto naquelas
que dão ênfase maior a análise formal, é unânime a importância atribuída ao
desenho e a pintura como meios de acesso aos universos psicóticos.
Tem
sede em Paris a Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão,
que possui um grande arquivo de documentos plásticos, para manejo do qual Wiart
e seus colaboradores estabeleceram uma codificação própria. No Instituto C.G.
Jung de Zurique existe o Bild Archiv e em Nova Iorque, pertencente à
Fundação C.G.Jung, o ARAS (arquivo para pesquisa sobre simbolismo arquetípico).
Bild Archiv de Zurique e ARAS de Nova Iorque usam a mesma codificação. É
esta codificação que utilizamos nas tentativas de organizar nosso arquivo: o
APIS (Arquivo para Pesquisa sobre Imagens Simbólicas), denominação sugerida
pela nossa colaboradora, Dra. Marianna Kitayama.
Se
atualmente todos, ou quase todos, aceitam desenho ou pintura na qualidade de
meios de acesso aos mundos internos dos esquizofrênicos, a verdade é que ainda
não são os que atribuem eficácia terapêutica ao ato de desenhar ou pintar.
Bleuler
toma uma atitude de preocupação. Ele descreve no livro Demência Precoce ou o
Grupo das Esquizofrenias: “O objetivo do tratamento da esquizofrenia
consiste, falando de um modo geral, em educar o paciente no sentido do restabelecimento
de seus contatos com a realidade, em combater o autismo” (p.477). Partindo
deste enfoque, para Bleuler, a atividade artística “em casos individuais pode
prestar bons serviços mas, devido à ausência da necessidade de contato com a
realidade, deve ser cuidadosamente supervisionada”(p.478).
Herman
Simon, outro mestre que eu venero, mostra-se radicalmente contrário à prática
da pintura no hospital psiquiátrico. A terapêutica ocupacional de Simon é uma psicagogia.
Sua meta é reeducar, combatendo os sintomas. Cada atividade ocupacional será
receitada como objetivo específico de opor-se a este ou àquele sintoma. Dentro
do seu ponto de vista Simon é coerente quando diz que “não se deve conceder
tempo nem dinheiro para a produção esquizofrênica de obras de arte”. “Na minha
opinião [é Simon que fala] não se deve prescrever nem mesmo apoiar ou tolerar
uma atividade que coincida com a direção anormal das ideias de um doente”
(p.35)
Felizmente,
durante o mesmo período em que Simon pontificava em Güttersloh, noutro hospital
da Alemanha, em Heildeberg, os doentes gozavam da liberdade de pintar e de
esculpir. O estudo das pinturas de Heildeberg motivou o livro de Prinzhorn,
publicado em1922 e ainda hoje considerado uma das obras mais profundas
dedicadas à atividade artística de psicóticos.
Entretanto,
o certo é que, até o momento presente, prevalecem as opiniões contrárias ao
valor terapêutico da expressão plástica. Mayer-Groo encarece a importância da
pintura espontânea como instrumento de investigação, mas contraindica-a como
meio terapêutico. “Desenhando ou pintando, (diz Mayer-Gross), o esquizofrênico
tende a mergulhar cada vez mais nas suas fantasias mórbidas” (p.282).
F.Reitman
que em dois livros, Psychotic Art e
Insanity, Art and Culture, estudou a expressão plástica de psicóticos, considera
“imenso seu valor diagnóstico”, porém nega-lhe qualquer validez terapêutica. A
produção plástica se lhe afigura sempre “tentativa de adaptação do doente a uma
apreensão distorcida da realidade.”.
O
mesmo argumento é sustentado por J.H. Plokker em livro recente intitulado Auto-Expressão Artística nas Doenças Mentais.
Lê-se na página 120: “Se é permitido a um esquizofrênico pintar livremente,
ele se submergirá ainda mais nos seus pensamentos e ficará ainda mais afastado
da realidade, mais absorvido nos seus delírios e mais influenciado por suas
alucinações”.
Estando
eu em área oposta, isto é, atribuindo eficácia terapêutica ao desenho e a
pintura, sigo sistematicamente o conselho de Darwin: tomo cuidadosa nota das
opiniões contrarias a opinião que eu adoto. Esta é a “regra de ouro” de Darwin.
Ele observara que esquecia facilmente as contradições as suas teorias. Para
evitar isso registrava-as por escrito, escrupulosamente.
Continuemos.
De
certo a psicanálise não toma posição de combate direito contra os sintomas. Seu
método terapêutico consiste essencialmente em descobrir a dinâmica secreta das
manifestações patológicas trazendo a consciência os conteúdos reprimidos no
inconsciente, que se apresentam deformados nos sintomas.
Como conseguí-lo?
Responde
Freud: “Restabelecendo, através do trabalho analítico, estes membros
intermediários pré-conscientes que são as recordações verbais”. Quanto às
imagens (pensamento visual, restos visuais) “constituem meio muito imperfeito
de tornar o pensamento consciente”. As imagens teriam, pois, de ser traduzidas
em palavras. Sendo assim, compreende-se que a escola psicanalítica freudiana
não seja entusiasta da utilização da pintura como terapêutica.
Para
meio de acesso ao mundo interno, ao inconsciente, sim.
O
próprio Freud escreveu um admirável ensaio sobre o quadro de Leonardo da Vinci
– A Virgem, o Menino Jesus e Sant”Ana, concluindo que o conjunto de
imagens nesta tela resume a história psicológica da Leonardo.
A
partir daí incontáveis estudos psicanalíticos tem sido publicados sobre obras
de arte e sobre pinturas de neuróticos e psicóticos, sempre com o objetivo de
descobrir conteúdos reprimidos. É nesta perspectiva que funcionam ateliês de
pintura anexos a consultórios analíticos.
O psicanalista
Ernest Kries, autor de interessantes explorações no domínio da arte, afirma que
“o artista psicótico cria a fim de transformar a realidade; ele não procura
comunicação e suas formas de expressão permanecem sempre as mesmas uma vez que
o processo psicótico haja atingido certa intensidade” (p.169).
Na
análise dos desenhos de Opicinus de Canastris, artista psicótico na Idade
Média, bem assim naqueles de um engenheiro contemporâneo, esquizofrênico, Kries
encontra idêntica significação dinâmica: ambos desenhavam para se protegerem
das vivências de destruição do mundo real, construindo mundos fantásticos que
conseguissem aprender e governar. Os desenhos teriam a função de concretizar,
confirmar e reforçar magicamente ideias delirantes. O livro de Kries, que
aliás, foi traduzido para o português, apareceu em 1952. Atualmente a posição
de muitos psicanalistas é diferente. Assim, por exemplo, Spitz verificou, que
na hipno-análise, ao serem atingidos níveis muito profundos dá-se à liberação
de reações sensoriais e motoras correspondentes a recordações raramente
recuperáveis através da psicoterapia verbal.
Spitz
admite que essas respostas sensoriais e motoras originam-se no mesmo nível do
inconsciente que aquelas obtidas pelas atividades plásticas. A pintura,
correspondendo, segundo Spitz, ao nível das respostas motoras, permitiria que
fossem acted out memórias profundamente regressivas, que escapariam a
expressão verbal.
Noutro
campo toma posição C.G.Jung. Jung dá máximo valor a função criadora de imagens.
Na sua psicoterapia, desenho e pintura são considerados fatores que mesmo podem
contribuir para o processo de auto-evolução do ser.
Quando
o neurótico já está em condições de sair do estado mais ou menos passivo de dependência
das interpretações do analista, Jung o induz a ação – isto é, pede-lhe que
desenhe ou pinte as imagens de sonho que mais o impressionaram. Não se trata de
fazer arte - trata-se, na expressão de Jung, “de produzir uma eficácia viva
sobre o próprio individuo”. “Dar forma material à imagem interna, obriga a
considerar atentamente cada uma de suas partes que poderão deste modo
desenvolver toda a sua força evocadora”.
Correntemente,
a pessoa detém-se sobre as imagens de seus sonhos apenas durante a sessão
analítica. Logo depois é absorvida no tumulto cotidiano. As imagens esvaem-se.
Outra coisa será tentar captá-las sobre o papel, lutando contra pincéis e cores
e tanto melhor quanto maior for o esforço e tempo dedicado a este trabalho. O individuo
necessitará cada vez menos de seu analista. Se descobre, por sua própria
experiência, que a formação de uma imagem simbólica libera-o de uma condição de
sofrimento e o ajuda a galgar outro nível de consciência, torna-se independente
por auto-criação, isto é, dando forma a suas imagens internas ele se modela
simultaneamente a si mesmo.
O que
acaba de ser dito refere-se a neuróticos e a todos aqueles que buscam o
desenvolvimento de sua personalidade, a própria individuação.
Mas,
ainda quando se trata de psicóticos, de esquizofrênicos, Jung continua a
atribuir ao desenho e a pintura função terapêutica.
Por
intermédio da pintura “O caos aparentemente incompreensível e incontrolável da
situação total é visualizado e objetivado; poderá ser observado a distância
pelo consciente, analisado e interpretado. O efeito deste método é
evidentemente devido ao fato de que a impressão primeira caótica ou
aterrorizante é substituída pela pintura que, por assim dizer, a recobre. O tremendum
é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em
qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência original e seus
ameaçadores efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a
experiência, e assim mantém o terror a distância” (V.3, 260). Muitas e muitas
vezes testemunhei essa despotencialização de imagens aterrorizantes, por meio
da pintura. Para ser obtido esse efeito, é frequente que a mesma imagem tenha
de ser desenhada ou pintada repetidas vezes. Não se trata de estereotipias
nesses casos, mas de um difícil trabalho de desgaste da energia de uma imagem
perturbadora.
Ainda
o desenho e a pintura permitem ao doente dar forma as forças defensivas que se
opõem à dissociação. Forcas autocurativas manifestam-se de maneira instintiva
quando a psique se desorganiza. O sistema psíquico não diverge nisso de todos
os outros sistemas biológicos. Uma vez rompido seu equilíbrio, tende a
recuperá-lo. Assim, impulsos defensivos, por necessidade instintiva, buscam
aproximar opostos em conflito e lançar pontes sobre cisões que parecem
irreparáveis.
As
forças ordenadoras que se opõem ao caos configuram-se de preferência em imagens
circulares dos mais diversos aspectos, mandalas, seja com a presença de um
centro em torno do qual elementos dispares tendem a agrupar-se, seja de
arranjos concêntricos compostos de representações múltiplas, contraditórias e
mesmo inconciliáveis. “Isso é evidentemente uma tentativa de autocura, que não
se origina da reflexão consciente mas de um impulso instintivo”, diz Jung.
O
acerto da STOR possui bela coleção de mandalas. Empiricamente constatei a
função autorreguladora e autocurativa dessas imagens.
Não
só através da construção de imagens circulares manifestam-se os impulsos de
defesa da psique. Desenho e pintura serão usados para retirar do caos objetos
significativos, servindo ao doente de instrumento para reestruturar o mundo
real. Haverá casos, como aqueles citados por Kries, não duvido em que o desenho
seja utilizado para destruição mágica do mundo. Entretanto, em muitos outros
casos o doente procura, desenhando ou pintando, reconstruir o mundo real que,
para ele, sofreu um verdadeiro abalo sísmico. E nesse ansioso esforço de
reconstrução do mundo externo reestrutura simultaneamente seu mundo interno.
Ainda
e não menos importante, é a objetivação de imagens simbólicas. O símbolo é o
mecanismo psicológico que transforma energia (Jung). Assim, por meio da
formação da imagem simbólica poderão ocorrer transposições de energia de uns
conteúdos psíquicos com sobrecarga energética para outros conteúdos, resultando
numa mais equilibrada distribuição de energia e passagem de níveis em direção a
consciência.
A
pintura dará ao doente que começa a lançar frágeis pontes para o mundo real,
oportunidade de utilizar a linguagem emocional das imagens quando ainda é
incapaz de comunicação verbal. Surgem então pinturas de fragmentos da realidade
carregadas de vivências pessoais intensas. O exercício da linguagem plástica
ajuda, nesses casos, ao estabelecimento das comunicações verbais e melhora os
contatos interpessoais.
Esta é a experiência adquirida no
atelier de pintura da STOR. Não adianta a pretensão de combater o autismo
solicitando o esquizofrênico a pintar naturezas mortas e paisagens reais,
segundo prescrevem Plokker e outros autores, se o momento não for oportuno.
Estando o doente acossado pela visão de uma imagem interna aterrorizante, será
preferível exorcizá-la. No momento exato, se as condições forem favoráveis,
ele se dirigirá à realidade por caminhos curtos ou longos. Fora do mundo o
homem não existe verdadeiramente. Daí a busca instintiva da “bela realidade” na
expressão de Renée, a jovem esquizofrênica tratada por Madame Sechehaye.
Uma vez por semana, as sextas-feiras,
a monitora conduz seus pintores a um morro situado no terreno que cerca o
hospital: nesse lugar a natureza é maravilhosa. Lá, quase sempre,
espontaneamente, são pintadas paisagens (muitas serão apresentadas neste
simpósio). Há, porém doentes que ainda não se acham em condições de reiniciar
comunicação com o mundo. O terapeuta devera respeitá-los e manter-se discreto.
Quando instalei o setor de desenho e
pintura, em setembro de 1946, entre as atividades da terapêutica ocupacional,
minha intenção era encontrar caminho de acesso aos mundos interiores dos
psicóticos desde que as comunicações verbais eram tão escassas e precárias,
deixando o médico completamente do lado de fora do muro daqueles mundos
fascinantes.
Assim, foi surpresa e verificação de
que o ato de pintar adquiria, por si mesmo, qualidades terapêuticas. No
relatório do ano de 1948, escrevi: “Nossa observação cada vez mais confirma que
a pintura não só proporciona esclarecimento para processos patológicos, mas
constitui igualmente verdadeiro agente terapêutico”. Era uma constatação
empírica que continuou a ser confirmada nos anos subsequentes até a data
presente.
Anexo ao atelier de pintura está nosso
Museu, cujo acervo sobe a cerca de 80.000 documentos plásticos. Referindo-se
a este acervo, escreveu o professor Lopez Ibor, quando nos visitou, no dia 28
de setembro de 1956: “uma coleção artística psicopatológica única no mundo”. O
Museu de Engenho de Dentro continuou a enriquecer-se. Em 1969, por curiosa
coincidência também no mês de setembro, dia 2, Herbert Pée, diretor do Museu de
Arte de Ulm, Alemanha, chefe da delegação alemã a Bienal de S. Paulo, visitou o
Museu da STOR, a convite de Almir Mavignier, primeiro monitor do nosso atelier
de pintura e hoje professor numa escola de arte de Hamburgo. Escreveu Herbert
Pée: “estou profundamente impressionado com as obras de arte que aqui vi –
aumentam o acervo artístico do Brasil e o mundo precisa conhecer estas telas e
desenhos. O Brasil deveria proteger estas obras. Pertencem as maiores heranças
espirituais desta Nação”.
No Museu da STOR realizam-se
sucessivas exposições referentes a temas psiquiátricos ou a casos clínicos.
Também ali tem lugar as reuniões semanais do Grupo de Estudos, grupo promotor
deste simpósio, o 4a que realizamos.
Lentamente atingi um dos meus
objetivos iniciais: que o Museu fosse um centro vivo de estudo e pesquisa.
Agora posso dizer aos jovens estagiários que o frequentam: nosso enorme acervo
de nada servira, será coisa morta, se não for estudado. Cabe a vocês esta
tarefa que exige ter diante de si muitos anos pela frente. Cuidar, defender
este patrimônio. Estudar, desenvolver nossos atuais métodos de pesquisa tornando-os
mais sistematizados e precisos, acompanhando sempre o desenvolvimento da
ciência que não para nunca. Vocês não perderão o seu tempo. Estas imagens
surgidas do inconsciente, do mundo primordial, têm muitas coisas a revelar
sobre os dinamismos da vida psíquica e sobre os mistérios da atividade
criadora.
Obras aqui expostas são de CLIENTES/ USUÁRIOS da CASA DAS PALMEIRAS
*Conferência feita na abertura do simpósio A Esquizofrenia
em Imagens, comemorativo do XXV aniversário da STOR -CPPII, 13 -16 de setembro
de 1971.
Publicado na Revista do Grupo de Estudos C. G. Jung
QUATERNIO- 1973 - RJ
pgs. 123 -136.
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