Nise da Silveira, 1989.
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Cartas a Spinoza - Nise da Silveira
Saudades eternas da insubstituível mestra
Homenagem - 17º ano do falecimento
desta Sábia Senhora do Mundo Interno
(30 de outubro de 1999)
– trechos da sua última carta a
Spinoza.
Carta VII
Meu
caro Spinoza,
Você
sabe que o estudo da Ética é difícil.
Sem dúvida. Mas também é fascinante acompanhar o percurso labiríntico desse
livro, uma proposição remetendo a outra muito anterior, o desdobramento para
diante nunca perdendo os fios que ficaram para trás; outras vezes, fazendo
rápidos movimentos que levam a saltos de nível. Não há extravios a temer.
Sente-se logo que sua mão é forte, seu pensamento, seguro.
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O ser humano, sendo um modo da substância infinita, tem sua
existência limitada, duração dependente de causas exteriores. E como é frágil
este modo, por mais que se esforce
para persistir em sua existência, ante tantas forças destrutivas, que se agitam
em torno dele. Só a substância infinita é eterna
Foi nisso que entendi da leitura de
partes anteriores da Ética e de sua
carta a Louis Mayer (Carta XII).
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Você já havia dito no livro I que Deus é
não somente causa eficiente das coisas, mas também de sua essência. Daí
decorre, sem dúvida, a presença de Deus de uma ideia que exprima a essência dos
corpos humanos, sob espécie de eternidade (V, XXII).
Sendo assim, o espírito humano não pode
ser absolutamente ser destruído com o corpo, mas desse espírito subsiste alguma coisa (o grifo é meu), que é
eterna.
Embora não atribuamos ao espírito humano
duração que exceda a duração do corpo no tempo a parte que pertence à essência
do espírito (aquela alguma coisa) será necessariamente eterna. Não se
extinguirá com o corpo.
Sentimos
e experienciamos que somos eternos (V, XXIII).
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Desejaria demarcar
bem o seu conceito de eternidade, e o conceito de imortalidade, segundo o
cristianismo.
A ressurreição é um dogma cristão, que
inclui corpo e espírito. Uma corrente admite que o homem é constituído de duas realidades diferentes – corpo e alma. O corpo seria uma
espécie de cárcere da alma, de onde a morte a libertaria. Outra corrente afirma
a unidade do homem: “O homem forma uma unidade. Todo ele inteiro é carne,
corpo, alma e espírito. Pode viver duas opções fundamentais: como homem carne
contenta-se consigo mesmo e fecha-se em seu próprio horizonte. Como homem
espírito abre-se para Deus, de quem recebe a existência e a imortalidade”. (2)
Alma e corpo (corpo glorioso) ressuscitam.
Na sua concepção, porém, só uma parte do
espírito seria eterna. E a amplitude dessa parte eterna variaria, segundo a
capacidade que ela possuísse para penetração na essência das coisas.
Uma vida conduzida segundo os princípios
da Razão, baseada na firmeza, generosidade e concepção de ideias adequadas, já
seria uma grande conquista. Você, porém, caminha para mais alto ainda.
Impressiona-me que você não demarque
fronteiras entre vida e morte. O que importa, na sua visão, será a amplitude da
eternidade conquistada e com ela o gozo da beatitude.
Spinoza, você me faz lembrar o poema de
Kabir, o persa:
‘Ó
amigo! Busca-o durante tua vida, conhece enquanto vives, compreende enquanto
vives:
Pois na vida está a libertação.
Se teu cativeiro não se romper enquanto vives, que esperança de libertação
haverá na morte?
.........................................................................,
Se obténs agora a união,
estarás unido a Ele para sempre,
Mergulha na verdade”.
Você talvez dissesse: Mergulha desde já na
Substância Infinita.
Agora e sempre,
Nise.
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