Nossa Senhora - crayon, M. E.
Lápis cera oleoso, R.
Dois artistas - mãos criativas
- Acervo da Casa das Palmeiras -
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Centenário de Jung – Imagens do Inconsciente.
Catálogo de Exposição – Museu de Arte Moderna/ 1975.
Nise da Silveira
Introdução
Quem estudar demoradamente série de imagens pintadas por esquizofrênicos
ficará convencido de que na produção plástica está o caminho menos difícil,
para acesso ao mundo interno desses seres tão herméticos.
Quando à imagem se conjuga a informação verbal, tudo se simplifica
bastante. Uma pintura abstrata, com linhas quebradas justapostas cerradamente,
foi traduzida pelo autor, como representação da ambição.
A mesma pessoa em pintura a que deu o nome de “árvore das emoções”
revelou código de significação das cores que poderá servir de guia no estudo de
suas pinturas; para ele amarelo é glória, rosa, amor; branco, ânsia; marrom,
paixão; azul profundo, ciúme. Sem a pintura seria pouco provável descobrir-se
que no íntimo daquele homem de aspecto humilde e face à primeira vista
impassível permanecessem guardadas secretas ambições nem que no seu mundo
interno tivesse raízes uma árvore de intensas emoções.
A pintura revelará muito sobre a maneira como o individuo apreende as coisas,
sobre sua visão do mundo. Esta visão depende, em principio, de suas vivências
do espaço. A semiologia psiquiátrica tradicional é muito pobre na investigação
das perturbações das vivências do espaço. É necessário reconhecer no espaço dimensões
subjetivas que o farão parecer claro ou escuro (E.Minkowski), no espaço claro
(não se trata de luz física) há distância, há espaço vazio, livre, entre os
objetos que se apresentam com suas delimitações nítidas, no espaço escuro, também
não se trata de luz física, mas de uma sensação de envolvimento, do individuo
sentir-se apertado, oprimido pela obscuricidade, os objetos de tanto estarem
próximos imbricam-se, interpenetram-se, resultando daí uma visão caótica do
mundo, o estudo atento dos casos de pintura de esquizofrênicos levará o
pesquisador a verificar que não está diante de rabiscos tumultuosos lançados a
esmo que lhe permitam usar as etiquetas de “deterioração” ou de “demência”, mas
de um caos em sentido bíblico, ou seja, da massa confusa de onde todas as
coisas tiveram origem.
É comovedor acompanhar, através de centenas de pinturas, os esforços
enormes que um homem faz para retirar os objetos do caos, pinçá-los por assim
dizer, enquadrá-los para prendê-los, até conseguir dispô-los em arranjos bem
próximos daqueles exigidos na faixa da realidade. É o que chamamos a busca do
espaço cotidiano.
Até ai nos movemos em áreas bastante próximas do consciente, mas não têm
medida as profundidades da psique que a produção plástica livre de
esquizofrênicos nos poderá fazer vislumbrar.
Fragmentado o ego, desorganizadas as funções de orientação do consciente,
caídos os diques que mantinham o inconsciente a distância, revela-se a psique subterrânea,
deixando descoberta sua estrutura básica e permitindo que se tornem
perceptíveis seus processos arcaicos de funcionamento dos quais se originam os
temas míticos (mitologemas).
Foi precisamente a experiência com esquizofrênicos que levou Jung para
além das camadas superficiais do inconsciente, dos conteúdos reprimidos que
constituem o principal material de trabalho na análise de neuróticos,
conduzindo-o a regiões da psique ainda inexploradas.
Médico psiquiatra do hospital Burgholzli, Zurique, no ano de 1906, Jung
observou o caso de um esquizofrênico paranóide: dizia o doente que, se movesse
a cabeça de um lado para outro olhando o sol, o pênis do sol também se movia e
esse movimento era a origem do vento. Mais tarde, Jung encontrou na descrição
de visões de adeptos de mitra, publicadas pela primeira vez em 1910, a mesma
imagem, a mesma ideia. ”E será visto o chamado tubo, origem do vento predominante.
Ver-se-á no disco do sol algo parecido com um tubo, suspenso. E na direção das
regiões do ocidente é como se soprasse um vento do leste infinito. Mas se outro
vento predominar das regiões do oriente ver-se-á da mesma maneira o tubo voltar-se
para aquela direção”. Num hospital psiquiátrico de Washington, um internado
negro, inculto, contou a Jung um sonho no qual era submetido ao castigo de Ixion,
personagem de mitologia grega condenada por Zeus a girar eternamente amarrado a
uma roda de fogo.
“Essas e outras experiências semelhantes foram suficientes para
indicar-me a solução do problema: não se tratava de hereditariedade racial
especifica, mas de uma característica humana universal. Não se tratava tampouco
de ideias herdadas, mas de uma disposição funcional para produzir
representações semelhantes ou análogas. A esta disposição dei mais tarde a denominação
de arquétipo”. (c.w.5,102).
Pesquisas posteriores continuaram a trazer confirmação para as
observações iniciais. Em estudo sobre a esquizofrenia, publicado em 1957, Jung
escreve: “Os sintomas específicos da esquizofrenia, na aparência, são caóticos
e sem sentido. Entretanto, examinados em profundeza, caracterizam-se, como
certos sonhos, por associações primitivas ou arcaicas estreitamente afins com
temas mitológicos”. (c.w.3,261).
Foi, portanto da experiência clinica que Jung deduziu os conceitos de
inconsciente coletivo e de arquétipo, importantíssimos para a compreensão da
própria natureza da psique.
Para espanto nosso, na produção plástica livre de esquizofrênicos que frequentavam
os ateliers de pintura e de modelagem da seção de terapêutica ocupacional, no
Centro Psiquiátrico Pedro Segundo, surgia imagens que não se deixavam conectar
diretamente com a problemática individual de seus autores, mas estranhamente
transbordavam para temas mitológicos. Esses documentos pertencem ao Museu de
Imagens do Inconsciente e alguns dentre eles podem ser vistos na exposição ora
apresentada.
Uma série de pinturas mostra a metamorfose de mulher em flor, É réplica
do drama de Dafne, mítica exemplificação da condição de filha tão estreitamente
fixada à mãe que seus próprios instintos não lograram desenvolver-se permitindo-lhe
ir ao encontro do homem. Ela recua, e a mãe dominadora transforma-a em flor. Outra
série pintada por sapateiro inculto apresenta surpreendentes analogias com
temas do mito de dionysos. Os motivos são mulheres com cabeça de vaca ou
dançando, o bode, o sátiro, uvas, velhos barbudos semelhantes ás representações
arcaicas daquele deus. Nos desenhos de outro autor aparecem também o bode, o sátiro,
o cacho de uvas nas mãos de um homem jovem conforme é figurado o dionysos menos
antigo.
O mito universal do dragão baleia está aqui representado por três
autores. Encontro do navegante com o monstro marinho, fuga diante da baleia
voraz, a vivência de ser engolido, de ser levado para o fundo das águas. Não
ocorre volta à luz do sol segundo acontece ao herói do mito. O homem é lançado
pela baleia num país encantado na profundeza do mar (esquizofrenia).
Povoam o acervo do Museu de Imagens do Inconsciente os mais estranhos
seres místicos e animais fabulosos, muitas vezes difíceis de correlacionar a
suas matrizes arquetípicas por se apresentarem em abundância tumultuosa, misturarem-se,
condensarem-se entre si.
O inconsciente junguiano é ilimitado e indeterminado. Daí o aspecto
cósmico das imagens arquetípicas assinalado por Jung, suas analogias solares,
lunares, estrelares, telúricas.
Nos delírios dos psicóticos e na sua produção plástica são muito comuns
os temas de comunicação com os astros. Mergulhados na profundeza do
inconsciente, acham-se mergulhados na totalidade universal, onde todas as
coisas interligam-se sem descontinuidade. Um exemplo demonstrativo são três
pinturas de Engenho de Dentro que representam o Sol provido de um longo tubo. Ressalta
a analogia dessas imagens com a alucinação do doente de Jung, referida acima, e
com as visões de adeptos de Mitra, nas quais os movimentos do tubo do Sol são a
origem do vento. Como único comentário as suas três pinturas, o autor disse: ”o
sopro do meu nariz muda qualquer circunstância”. Ele transpõe para o nível
cósmico sua problemática individual. Identifica-se ao Sol e seu sopro é o
próprio vento capaz de produzir poderosos efeitos.
O visitante que tiver disposições para maravilhar-se encontrará na série
de pinturas cósmicas desta exposição ainda muitos outros motivos de
perplexidade.
Investigando durante longos anos produtos da atividade inconsciente em
sonhos, fantasias, delírios, Jung observou a recorrência constante de certas
situações e de certas figuras. Apresentavam-se personificações de componentes
psíquicos fundamentais tão típicos que Jung lhe deu nomes: sombra, anima, animus,
velho sábio, mãe primordial, jovem divina, herói, criança.
Nas coleções do Museu de Imagens do Inconsciente há numerosísimos
exemplos de tais personificações. E nesta exposição muitas delas encontram-se
presentes, agrupadas segundo a terminologia junguiana.
No grupo das animas, impressionam as imagens com aspecto de seres
élficos, representantes de um estágio ainda pouco diferenciado do principio
feminino. Jung diz que “a anima é o próprio arquétipo da vida” e que “o verde, cor da vida, lhe convém
adequadamente”. Tem as faces verdes várias imagens da anima que se configuram
em Engenho de Dentro.
Dentre o numeroso grupo das deusas-mãe apenas faremos referência a uma
delas. Vale a pena procurar vê-la. É mulher de estrutura enorme, toda branca, repousando
os pés sobre segmento do globo terrestre, talvez sobre o mar, e tocando com a
cabeça segmento da esfera da Lua. Sustenta nas mãos crescente lunar. O fundo da
pintura é a cartolina cinzenta, não pintada, dando ideia do espaço infinito. Solta
no espaço destaca-se uma mancha negra onde o autor escreveu: Deus minha mãe. Está imagem dá
testemunho da historicidade da psique. Aí vemos erguer-se do fundo do templo a
grande deusa arcaica, deusa da terra e deusa do céu. A inscrição sobre a mancha
negra não deixa lugar a dúvidas. Trata-se da divindade suprema, Deus-mãe, conceito
inteiramente estranho a um homem contemporâneo.
A pintura tornará visível a atividade obscura das forças instintivas que
se opõem à desagregação psíquica.
Algumas vezes essa atividade exprime-se através da elaboração de
verdadeiros rituais, na tentativa do erguer barreiras que detenham as irrupções
do inconsciente. Rituais onde contracenam anima e grande mãe; rituais com serpentes,
símbolos de perigosas pulsões, rituais de apaziguamento de divindades
terrificantes; rituais de sacrifício do animal, isto é da natureza animal do
homem; rituais do fogo e da morte. Observe-se na série dos rituais a
predominância de símbolos pagãos. Quando aparecem símbolos cristãos acham-se sempre
simultaneamente presentes representações de religiões antigas.
Outra maneira, muito mais frequente, de se tornarem manifestas as defesas
instintivas que se opõem á desordem da psique será por intermédio de imagens do
círculo. Irregulares algumas, outras quase perfeitas, seja que constituam
sozinhas o tema da pintura ou apareçam aqui e ali, ao lado de outros motivos, a
constância de sua presença fere a atenção do mais desatento dos observadores.
Jung estudou durante muitos anos essas imagens que surgiam
espontaneamente em sonhos, situações conflitivas, estados neuróticos, esquizofrenia.
E chegou à conclusão de que funcionavam como “círculos mágicos” (mandalas), defesas
visando impedir a invasão de conteúdos do inconsciente demasiado perturbadores.
O acervo do Museu de Imagens do Inconsciente possui centenas de mandalas
dos mais variados tipos. Muitas dentre elas podem ser apreciadas nesta exposição:
sob as formas de estrela, semicírculos que se tocam pela convexidade em vez de
se fecharem, cruz, espiral, labirinto, derivações do quatro e seus múltiplos, ou
do três e do cinco. Visões de conjunto da situação psíquica do individuo.
Visões do cosmos, tal a mandala “o planetário de deus”, na denominação de seu
autor.
A construção espontânea dessas formas, por mais perturbadas que sejam, visa
sempre ordenar elementos díspares ou opostos em torno de um centro, numa
mobilização de forças instintivas que tendem a compensar estados de confusão e
de dissociação.
Provavelmente perguntar-se-á agora: a objetivação de imagens do
inconsciente, por meio da pintura, terá valor terapêutico?
Quando se trata de neuróticos ou de indivíduos normais em trabalho de
análise, Jung insiste na importância de ser dada forma às imagens internas pela
pintura. Essas imagens “produzem eficácia viva sobre o individuo”, além de
facilitarem o indispensável confronto entre consciente e conteúdos do
inconsciente no curso do processo de individuação.
Entretanto, desde que o ego esteja gravemente atingido, segundo ocorre na
esquizofrenia, a situação modifica-se. O campo do consciente é invadido por
fatores impessoais carregados de dinamismo extraordinariamente forte que
arrebentam as fronteiras do ego e se apossam do individuo. Ele é possuído por
esses fatores, vivencia-os, mas não os elabora. O caráter patológico frisa Jung,
não reside nos conteúdos emergentes da estrutura básica de psique (inconsciente
coletivo). Estes conteúdos são sempre ”material sadio” (c.w.12,33), Vamos
encontrá-los em expressões da alma coletiva como os mitos, os contos de fada, os
dogmas das religiões, e também em realizações individuais-obras de arte, concepções
filosóficas, teorias científicas.
O que faz a doença é a dissociação do consciente que perde o controle
sobre o inconsciente (c.w. 9,39).
Apesar de reconhecer todas essas dificuldades, Jung admite que a pintura
possa ter função terapêutica mesmo na esquizofrenia. Em trabalho de 1957 lê-se:
“o efeito deste método (pintura) é evidentemente devido ao fato de que a
impressão caótica ou aterrorizante é substituída pela pintura que, por assim
dizer, a recobre. O tremendum é
exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em
qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência e seus ameaçadores
efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o
terror a distância’ (c.w. 3,250).
Muitas e muitas vezes testemunhamos a despontencialização de imagens
aterrorizantes por meio da pintura. Nesta exposição, por exemplo, pode ser
vista gigantesca mulher com cabeça de cão (a mãe terrível Hécate), imagem
alucinatória que enchia de pavor uma de nossas doentes, pintando-a repetidas vezes,
desgastou-se a carga energética de imagem que dentro de algum tempo esvaiu-se. Desintentificações
vegetais e animais processaram-se passo a passo em série de imagens. Opostos
aproximaram-se, com o resultado de paralelas melhoras clínicas.
Em setembro de 1957 foi organizada uma grande exposição de pinturas de
esquizofrênicos, vindas de vários países, por ocasião do 2º Congresso Internacional
de Psiquiatria, reunidos em Zurique. Levamos a contribuição de nosso Museu que
dispunha, naquela data, de um acervo pequeno em relação aos aproximadamente
noventa mil documentos plásticos que hoje possui. C.G. Jung foi o primeiro
visitante da exposição brasileira. Examinou as imagens vindas de terra tão
distante e comentou-as com o mais vivo interesse.
Assim, é um privilégio para o Museu de Imagens do Inconsciente apresentar
ao público, nos salões do Museu de Arte Moderna, quando se comemora o
centenário de nascimento do mestre, esta coleção de imagens pintadas livremente
num hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, documentação crua, sem qualquer
retoque ou influência cultural, e que
por isso mesmo confirma, evidencia, suas descobertas referentes à
estrutura básica da psique.
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Um comentário:
Excelente texto.Esclarece a caminhada interna. Obrigada.
Francis Braun
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