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terça-feira, 30 de outubro de 2018

Nise da Silveira 30/10/1999 - 2018 - Homenagem



                   Homenagem à Mestra NISE DA SILVEIRA
15/02/1905, Alagoas - 30/10/1999, Rio de Janeiro

           QUE É A CASA DAS PALMEIRAS
                                                                Nise da Silveira         
          Desde muitos anos nos preocupava o fato de serem tão numerosas as reinternações nos nossos hospitais do Centro Psiquiátrico. Basta dizes que dentre os 25 doentes internados nesses hospitais por dia, em média, 17 eram reinternações. Infelizmente a situação em 1986 é quase a mesma: para 28 internações, 16 são reinternações (pelo menos segundo nossas precárias estatísticas).
(...) Durante vários anos pensei quanto seria útil um setor do hospital, ou uma instituição que funcionasse como espécie de ponte entre o hospital e a vida na sociedade. Naturalmente seriam necessários recursos financeiros dos quais eu não dispunha para que fosse tentada experiência desse gênero. Conversei sobre o assunto com vários colegas que, entretanto, não mostraram interesse pelo projeto.
       Mas aconteceu que no inicio do ano de 1956 a psiquiatra Maria Stela Braga, recente colaboradora da Seção de Terapêutica Ocupacional que estava a meu cargo, logo participou entusiasticamente dessa ideia. Foi ela quem me apresentou à ilustre educadora Alzira Cortes (viúva do Professor La-Fayette Cortes) que, depois de breve conversação, sentiu e compreendeu a utilidade do projeto. D. Alzira já havia cedido a APAE o primeiro pavimento do casarão onde anteriormente havia funcionado o Colégio Lá-Fayette, na Rua Haddock Lobo. E agora, num gesto de confiança e generosidade, pôs à nossa disposição, sem qualquer formalidade, o segundo pavimento daquele prédio.
Logo começamos a elaborar as normas da nova instituição: Maria Stela Braga, psiquiatra, Belah Paes Leme, artista plástica, Ligia Loureiro, assistente social, e Nise da Silveira, psiquiatra. Para isso nos reuníamos no atelier de Belah, e foi ela quem encontrou o titulo CASA DAS PALMEIRAS, visto que o casarão da Rua Haddock Lobo possuía em seu jardim de frente um grupo de belas palmeiras. Assim evitávamos dar à renovadora instituição um nome que de alguma maneira aludisse às doenças mentais, tão discriminadas socialmente.
      Com a presença de alguns psiquiatras e de numerosos amigos, foi inaugurada a Casa das Palmeiras no dia 23 de dezembro de 1956. A Casa, instituição sem fins lucrativos, começou a funcionar imediatamente.
     (...) O principal método de tratamento empregado na Casa das Palmeiras é a terapêutica ocupacional, mas terapêutica ocupacional num largo sentido.
       (...)  O objetivo era utilizar a terapêutica ocupacional, se corretamente conduzida, como legítimo método terapêutico e não apenas uma pratica auxiliar e subalterna, segundo acontece habitualmente.
       (...)  Rótulos diagnósticos são, para nós, de significação menor, e não costumamos fazer esforços para estabelecê-los de acordo com classificações clássicas. Não pensamos em termos de doenças, mas em função de indivíduos que tropeçam no caminho de volta a realidade cotidiana.
          Nesse sentido visamos coordenar intimamente olho e mão, sentimento e pensamento, corpo e psique, primeiro passo para a realização do todo especifico que deverá vir a ser a personalidade de cada indivíduo sadio. Na busca de conseguir esta coordenação, fazemos apelo às atividades que envolvam a função criadora existente mais ou menos adormecida, dentro de todo indivíduo.  
          A criatividade é o catalisador por excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações, emoções, pensamentos, são levados a reconhecerem-se entre si, a associarem-se, e mesmo tumultos internos adquirem forma.
        Jamais temos a pretensão, está claro, que nossos clientes realizem obras de alta qualidade artística (o que às vezes acontece!). Terapeuticamente, o mais importante é que o mundo interno dissociado tome forma e encontre meios de expressão através de símbolos transformadores que o aproximem cada vez mais do nível consciente.
       A tarefa principal da equipe técnica da Casa das Palmeiras será permanecer atenta ao desdobramento fugidio dos processos psíquicos que acontecem no mundo interno do cliente através de inúmeras modalidades de expressão. E não menos atento às pontes que ele lança em direção ao mundo externo, a fim de dar a estas pontes apoio no momento oportuno.
         Convivendo com o cliente durante várias horas por dia, vendo-o exprimir-se verbal ou não verbalmente em ocasiões diferentes, seja no exercício de atividades individuais ou de grupo, a equipe logo chegará a um conhecimento bastante profundo de seu cliente. E a aproximação que nasce entre eles, tão importante no tratamento, é muito mais genuína que a habitual relação de consultório entre médico e cliente. A experiência demonstra que à volta a realidade depende em primeiro lugar de relacionamento confiante com alguém, relacionamento que se estenderá aos poucos a contatos com outras pessoas e com o ambiente. O ambiente que reina na Casa é por si próprio, assim pensamos, um importante agente terapêutico.
         A Casa das Palmeiras é um pequeno território livre, onde não há pressões geradoras de angústia, nem exigências superiores às possibilidades de resposta de seus frequentadores.
          Nunca procurou a coleira de convênios. Optou pela pobreza e a liberdade.
          As relações interpessoais formam-se de maneira espontânea entre uns e outros. Distinguir médicos, psicólogos, monitores, estagiários, clientes, torna-se tarefa ingrata. A autoridade da equipe técnica estabelece-se de maneira natural, pela atitude serena de compreensão, face a problemática do cliente, pela evidência do desejo de ajudá-lo por um profundo respeito à pessoa de cada indivíduo.
(...) Muitos indivíduos estão apenas aptos para atividades nas quais cada ato tenha valor próprio e proporcione prazer imediato. Por esse motivo damos tanta ênfase às atividades expressivas e lúdicas.
(...) Mas se denominam especialmente atividades expressivas àquelas que melhor permitem a espontânea expressão das emoções, que dão mais larga oportunidade para os afetos tomarem forma e se manifestarem, seja na linguagem dos movimentos, dos sons, das formas e cores, etc.
          A equipe da Casa das Palmeiras está sempre atenta para ler sem impertinência, ou melhor, apreender, o que transparece na face, mãos, gestos do cliente. Essa observação, seja nas atividades individuais ou de grupo, nos parece indispensável para que o cliente seja conhecido em maior profundeza e torne-se possível uma abordagem terapêutica mais segura. A emoção de lidar favorece mil oportunidades para essas observações.
 (...)  É curioso que haja sido um filósofo, Gaston Bachelard, quem abriu caminho para a pesquisa da importância psicológica dos materiais de trabalho. Ele investigou a atração preferente da imaginação criadora, em escritores e poetas, pelos elementos da natureza aos quais aqueles se achavam originariamente filiados: ou seja, que a imaginação procura uma substância de preferência para revesti-se: fogo, água, ar ou terra. Assim, revelam “segredos íntimos” (La terre et les rêvéries de la volonté). Bachelard, baseado nessas ideias, criou um novo tipo de crítica literária de grande repercussão, sobretudo na França. Mas transbordou da área da filosofia e da literatura para demonstrar a significação dos elementos da natureza na vida, no trabalho do homem normal e mesmo seu valor curativo para os distúrbios emocionais. “A saúde de nosso espírito está em nossas mãos”, escreve Bachelard (La terre et les rêvéries du repos): isto é, na manipulação dos elementos da natureza que convêm à nossa condição psicológica.
        O psiquiatra Paul Sivadon teve o mérito de trazer para o campo da psiquiatria as ideias de Bachelard e de aplicá-las à terapêutica ocupacional.
 (...) Outra maneira de ver a terapêutica ocupacional que poderá conduzir a aprofundamentos teóricos terá como ponto de partida a psicologia junguiana.
         Jung, ele próprio, nunca explana diretamente qualquer teoria sobre este método terapêutico. Mas sua psicologia está impregnada de atividade e foi a partir de suas ideias que, principalmente, nos inspiramos.
          Jung estuda a correlação entre imagens arquetípicas e instintos, pois, diz ele, não há instintos amorfos, cada instinto desenvolvendo sua ação de acordo com a imagem típica que lhe corresponde. Por que então deixar de utilizar a observação dos impulsos arcaicos que, não raro, irrompe nas psicoses e assim apreender às imagens as quais se acham interpenetrados, imagens essas que constituem a chave da situação psicótica de cada doente?
 (...)  Foi o que fez Jung nos seus estudos psiquiátricos. A terapêutica ocupacional muito lucrará em aplicar esses estudos em profundeza e estendê-los no seu campo de trabalho.
          Ainda outros dados. A psicoterapia junguiana tem por meta não só a dissolução de conflitos intrapsíquicos e de problemas interpessoais, mas favorece também o desenvolvimento de “sementes criativas” inerentes ao indivíduo e que o ajudam a crescer. Acontece que é justamente em atividades feitas com as mãos que, muitas vezes, se revela a vitalidade dessas “sementes criativas”, segundo presenciamos na Casa das Palmeiras.
          Nos neuróticos esse fenômeno se apresenta frequentemente. Jung escreve: “Se houver alto grau de crispação do consciente, muitas vezes só as mãos são capazes de fantasia”. Quando o ego não se acha muito atingido, a teoria das quatro funções de orientação da consciência no mundo exterior: pensamento, sentimento, sensação, intuição, se bem utilizadas em atividades que as mobilizem de acordo com suas deficiências, poderá ajudar bastante o individuo a obter melhor equilíbrio psíquico.
          Parece-me que a psicoterapia conceda ainda muito pouco valor à ação orientada com objetivo terapêutico. Despreza um belo campo de pesquisa.
          (...) Mas a Casa das Palmeiras prossegue sua caminhada. Completa agora em 1986, 30 anos de existência.
Referência:
Casa das Palmeiras - A Emoção de Lidar, Uma Experiência em Psiquiatria. Coordenado por Nise da Silveira.  Ed. Alhambra, 1986
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