A humanista, muito além de simples
médica, Nise da Silveira, achava que o doente não devia ser visto como doente,
mas como pessoa. Nise estava légua acima dos jargões da psiquiatria. Os seus clientes
eram sempre chamados pelo nome para dar-lhe dignidade, cidadania: Raphael,
Emygdio, Diniz, Otávio, José Bastos, Sacramento, Jair, Leia, Paulo, Francisco
Noronha, Darcílio, Carlinhos, Isaac, Adelina, Eunice, Glorinha e tantos outros
frequentadores das atividades expressivas/criadoras, seja no Museu de Imagens
do Inconsciente ou na Casa das Palmeiras, ou onde quer que seja. Dra. Nise
fazia questão de pronunciar o nome de cada um com clareza e profundo respeito.
E mesmo ao visitar os ateliês, dirigia-se a eles sempre com postura de valor à
pessoa humana, com particular e delicada atenção. Sempre refinada e acolhedora
em especial para com as pessoas dilaceradas em sua estrutura psíquica e
emocional. Constatava doenças ou graves problemas, mas jamais diagnosticava as
pessoas categoricamente. Não criava estigmas. Preferia as palavras de um de
seus mestres, Antonin Artaud: “estados
alterados do ser”.
Pessoa muito doce, delicadíssima,
requintada e sempre amável, com espírito de humor invejável, era por vezes de
uma irritabilidade surpreendente, capaz de dizer coisas terríveis e muito duras
para pessoas que por alguma razão insistiam e que se chocavam com suas ideias. Quem
conviveu com Nise assistia perplexa cenas assustadoras à queima roupa.
Costumava se justificar ao dizer: “Este
meu temperamento alagoano... com Lampião debaixo da pele”. Nise suportava
serenamente a ignorância das pessoas em suas atitudes francas e espontâneas
pela inocência, mas era implacável com a empáfia dos soberbos; em desacordo
podia ficar muda, estática, transparecendo frieza de desprezo absoluto.
Intolerante com as bobagens ditas aleatoriamente.
Quando jovens psiquiatras,
recém-formados, se aproximavam de Nise da Silveira, para estudar ou trabalhar,
ela lhes fazia um pedido bem-humorado: “Por
favor, lave a cabeça com shampoo de coquinhos. Esfregue bem!... É preciso
limpá-la, para que você se livre do que aprendeu na universidade.” Estas e
outras incríveis saídas que assistíamos estão transcritas no livro NISE de
Bernardo Horta: “Ah, é? Se não sabe
francês, você vai ler em inglês pra mim... Agora. Leia! Chega de tanta
incapacidade. Vamos! Como não consegue? Consegue sim!... Leia, não se faça de
boba!”. “Ah, minha filha, você ainda está muito crua! Vai ‘ralar coco’ até
sangrar os dedos... Vou lhe dar uma sugestão: esfrega palha de aço na cabeça.
Bastante palha de aço. Vai estudar!”.
Não era nada confortável e fácil
conviver ao lado da Doutora, como a chamávamos. Era preciso tomar cuidado com o
que se dizia. Aqueles que desejavam seguir outras linhas de pensamento e
interferindo no seu método com novidades, sem longa experiência e prática, sem
o conhecimento profundo de seu trabalho, simplesmente, dizia com aspereza: “A porta é a serventia da casa, não me
venham com novidades”. E aos que se utilizavam dela para vantagens pessoais não cansava de lançar uma flecha machadiana e implacável: “Servi de agulha pra muita linha ordinária”.
Frases
de Nise, eventualmente, aqui já publicadas:
“Há
psiquiatras muito inteligentes, não levem ao pé da letra quando chamei de burrice exemplar da psiquiatria. Jung,
por exemplo, não era só um psiquiatra, era um gênio. Foi um homem que levou a
psique ao encontro da matéria. Ele reúne matéria e espírito e se aproxima de
algo, em psicologia, muito próximo de Einstein. Uma coisa é considerar que
matéria e espírito são um só. Outra é a visão cartesiana, que considera a
matéria, o bicho, o homem, uma máquina que funciona isoladamente com a razão no
alto da cuca comandando”.
“Sabemos muito pouco da
mente, da natureza psíquica, das emoções. Desenhar, pintar, modelar, gravar,
depois colocar os nomes, datar os trabalhos e guardá-los em série estas imagens
plásticas para pesquisa é ter a possibilidade de um dia, no futuro, se chegar a
uma compreensão mais clara e profunda do mundo interno destas pessoas tão
enigmáticas, tão misteriosas. A ciência sabe muito pouca a este respeito. E o
método para se aproximar de um conhecimento revelador é basicamente o
pré-verbal, a pré-palavra. Temos oficinas de encadernação, carpintaria, música
e teatro, dança e mímica, botânica, bordado e costura. Atividades expressivas
podem apontar os caminhos da vida interna.”
“A pesquisa e o estudo
a partir das vertentes imagísticas estão apenas começando. Somente o ponto do
iceberg despertou. A partir do século XXI, os interessados neste assunto devem
se dedicar intensamente, pois das imagens surgirão não só revelações sobre o
corpo psicológico e físico, como descobertas das potencialidades mentais dos
seres humanos. As descobertas futuras sobre o inconsciente revolucionarão a
história da raça humana.”
Texto - arquivo de M.P.F.
Foto de Nise M.P.F. - Instalação aos Quatro Elementos da Natureza, 1970, Santa Teresa, RJ.
2 comentários:
nossa, que fantástico esse texto! que força nesses enunciados! excelente doutora.
Ficamos felizes com as observação.
Este Blog é bastante visitado, mas poucos comentam.
Todos são bem vindos para apreenderem com textos e/ou imagens o que é a Casa das Palmeiras, o pensamento de Nise e de C. G. Jung
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