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terça-feira, 12 de julho de 2011

Interpretação dos Contos de Fada

A primeira edição da obra A interpretação dos Contos de Fada de Marie Louise von Franz, em português pela Achiamé, 1981, RJ, teve o prefácio de Nise da Silveira


Os editores de A Interpretação dos Contos de Fada de Marie Louise von Franz, amigos meus, pedindo-me que escrevesse este prefácio colocaram-me numa situação extremamente difícil. Poderá a discípula apresentar sua própria mestra? É evidente que isso esta fora de todas as regras, e mesmo eu nunca ousaria tanto. Contribuirei apenas com alguns dados que ajudem o leitor a situar a obra que tem em mãos. Aliás, o livro é por si só apresentação da autora e do tema nele tratado. Simplicidade, maneira direta de dizer, extraordinária clareza de pensamento, ressaltam desde as primeiras páginas. E o leitor, seja qual for sua idade, logo se deliciará com o reencontro dos contos de fada, mas talvez se surpreenda descobrindo, através do livro, quanto há para aprender, e de muito serio, sobre as profundezas da alma humana nessas historias de encantamento.
A autora de A Interpretação dos Contos de Fada foi a mais próxima colaboradora de C. G. Jung. Em 1934, aos 19 anos de idade iniciou essa colaboração traduzindo textos alquímicos latinos e gregos dos quais o mestre necessitava para seu trabalho. Além dessa ajuda filológica M. L. von Franz tornou-se mais tarde co-autora de obras capitais de Jung. Seu escrito Passio Perpetuae faz parte integrante de Aion, livro de Jung que estuda a era cristã, focalizando, sobretudo, o dilacerante problema dos opostos. Passio Perpetuae completa Aion analisando o processo psicológico da passagem do mundo antigo para o cristianismo através da interpretação dos sonhos e visões de Santa Perpétua, mártir do século I.
Outro trabalho de M. L. von Franz, Aurora Consurgens, constitui na edição original alemã, o III tomo da obra de Jung Mysterium Coniunctionis. “Nós realizamos juntos este livro, pois cada autor participou do trabalho do outro” (c.w. 14, XVI). Aurora consiste na interpretação de um texto alquímico medieval atribuído a S. Tomas de Aquino.
O estudo do simbolismo encontrado nos textos alquímicos não poderia de certo ficar isolado de pesquisas referentes a outras modalidades de manifestações do inconsciente – sonhos, visões, fantasias, mitos, lendas, contos de fada, M. L. von Franz trabalha em todos esses campos afins. No caso particular da alquimia, seu ponto de partida, e dos contos de fada em cuja interpretação é especialista mundialmente reconhecida, delimita as duas áreas sem, entretanto, separá-las por muros de incomunicabilidade.
A principal diferença entre os escritos alquímicos e os contos de fada, segundo M. L. von Franz, reside no fato de que os alquimistas, além de projetarem conteúdos do inconsciente sobre os materiais químicos, teorizavam também. Foi graças a tais associações em torno de conteúdos do inconsciente que Jung descobriu um dos aspectos psicológicos essenciais ocultos nos textos alquímicos: tentativas inconscientes de lançar conexões entre o cristianismo e o lastro pagão da psique.
Quanto aos contos de fada vêm de regiões muito distantes do mundo consciente, sofreram um mínimo de elaborações através do tempo, conservando-se na sua pureza original, completamente pagãos, salvo alguns poucos onde se insinuaram recentes elementos provindos do cristianismo.
É uma arte difícil e sutil traduzir nos termos da psicologia moderna a linguagem ingênua dos contos de fada, descobrindo nos seus personagens a longínqua vibração de emoções coletivas da humanidade.
M. L. von Franz compara a procura do sentido dos contos de fada a tentativa para alcançar, seguindo-lhe as pegadas, um cervo fugitivo particularmente ágil. O caçador deverá adestrar-se por meios de longos exercícios até torna-se capaz de empreender seu objetivo com probabilidade de sucesso. É decerto um método de trabalho lhe será útil. Este método, em seus múltiplos aspectos, o leitor o encontrará no III capitulo, exposto com admirável clareza. Contudo, a operação de captura do servo será sempre delicada, pois ele terá de ser apanhado vivo. Outros métodos e técnicas mais fáceis ensinarão a esquartejar o animal, a dissecar-lhe as vísceras para examiná-las aos pedaços. O método junquiano que M. L. von Franz desenvolve, vê em cada conto um organismo vivo que encerra no seu âmago profundas significações. Apreender tudo quanto esteja condensado em imagens fantásticas, é a tarefa do interpretador dos contos de fada. Fascinante tarefa, decerto, mas terá algum uso prático?
Jung diz que é nos contos de fada onde melhor se poderá estudar a anatomia comparada da psique. Esses contos oferecem uma imagem mais rude, mais elementar das estruturas psíquicas básicas. Assim, prestam-se como matéria preparatória para o estudo dos mitos e lendas que se apresentam enriquecida por maior número de elementos culturais, e para a análise objetiva dos sonhos, os quais evidentemente complicam-se de numerosos elementos de natureza pessoal. Por isso a interpretação dos contos de fada figura como matéria importante no programa de formação dos analistas no Instituto C. G. Jung de Zurique.
Mas os contos de fada têm ainda utilidade mais ampla.
Em Aion, Jung escreve: “Mitos e contos da fada dão expressão a processos inconscientes e escutá-los faz com que esses processos de novo revivam e tornem-se atuantes, restabelecendo, portanto a conexão entre consciente e inconsciente”.
As raízes da consciência estão mergulhadas nas profundezas do inconsciente. E os contos de fada são o veículo adequado capaz de trazer a consciência infantil em formação, de maneira assimilável, às ricas substâncias contidas nas raízes da psique.
Deveriam ter um lugar importante na educação. Infelizmente assim não acontece. Mesmo quando oferecidos à criança costumam vir hoje retocados inescrupulosamente, os personagens todos bonzinhos e alambicados. Sua força salutar fica perdida.



Há no Brasil estudioso dos contos de fada. Luis da Câmara Cascudo, nosso maior folclorista, lhes dá muita atenção. Recolheu numerosas histórias de encantamento, como ele prefere denominar os contos de fada, que circulam sejam no litoral, seja no interior do país. E foi mais longe. Sem filiar-se a qualquer escola psicológica, com extraordinária agudeza observou-lhes a íntima urdidura chegando à conclusão de que “os contos variam infinitamente, mas os fios são os mesmos”. Por exemplo: identifica nos contos tradicionais brasileiros, A princesa e o gigante, Quirino vaqueiro do rei, o boi Leição, elementos fundamentais do conto egípcio, Os dois irmãos, escrito há 32 séculos.
Ainda outras observações de Câmara Cascudo são valiosas para o psicólogo da linha junquiana. Ele apurou que nos contos tradicionais brasileiros os motivos indígenas são mínimos; os negros, muito reduzidos, havendo grande predominância dos temas de origem européia. Outro dado importante é sua afirmação: “Não conheço historia privativa de uma região. Naturalmente haverá maioria de sereia nos contos das praias. Mas as sereias encantam nas historias do sertão e nelas passam os peixes encantados e a serpente que dorme num palácio no fundo do mar”. Câmara Cascudo acrescenta: “o conto tanto mais tradicional, conhecido e querido numa região, mais universal nos seus elementos constitutivos. Um tema restritamente local não se divulga nem interessa”. (Essas citações encontram-se no prefacio de Contos tradicionais do Brasil, Edições de Ouro).
Não se poderá entender os fatos verificados por Câmara Cascudo sem admitir a existência de um lastro psíquico comum, muito profundo, de cujas imensas distâncias nos cheguem os contos de fada.
Será de esperar que o belo livro de M. L. von Franz traga intenso estímulo aos estudiosos brasileiros para incursões nos domínios do maravilhoso e também contribua para nos levar a refletir sobre a qualidade da nutrição literária que oferecemos a nossas crianças comparável a sopas desidratadas e empacotadas, salvo exceções raríssimas.


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