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segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Nise da Silveira _ A Esquizofrenia em Imagens _ 1971 - 1973

         Neste período delicado de pandemia, a Casa das Palmeiras mantem suas reservas necessárias. Eterna presença da fundadora desta instituição _ Nise da Silveira (15/fev./1905 _ 30/nov./1999) São 22 anos de resistência de uma turma constante aos ideias desta revolucionária e precursora psiquiatra do Brasil. Artigo longo, entretanto, verdadeira aula para o público em geral, não só os profissionais da saúde.

 A ESQUISOFRENIA EM IMAGENS * 

                                                        Nise da Silveira          

           Certamente é benévola concessão do destino que uma pessoa possa fundar um setor de trabalho, por modesto que seja, e orientar seu desenvolvimento até vê-lo atingir a idade de vinte e cinco anos. Assim, sinto-me feliz comemorando o XXV aniversário da Seção de Terapêutica Ocupacional e Reabilitação (STOR) do Centro Psiquiátrico Pedro II, com a realização deste simpósio, viva demonstração do interesse que este setor de trabalho desperta nos seus colaboradores, estagiários e funcionários.
          O simpósio sobre o tema A Esquizofrenia em Imagens está dividido em duas partes: 1a. Desenho e pintura como Meios de Acessos ao Mundo Interno, e 2a. Desenho e Pintura como Meios Terapêuticos. Tentarei uma rápida visão de conjunto sobre estes dois itens, que serão examinados em detalhe no correr de nossas reuniões.
          É fácil compreender e aceitar que desenho e pintura sejam meios de acesso ao mundo interno. 
           “Os processos de representação que se realizam no outro nunca nos são acessíveis diretamente, mas apenas nas suas reações psicomotoras e principalmente através da linguagem ou das artes plásticas”, diz Kretschmer.
       Ora, na condição esquizofrênica o indivíduo esta vivendo estados existenciais caracterizados principalmente pela intensa polarização da energia psíquica sobre conteúdos do inconsciente, cisão do curso do pensamento, desligamento do real.
        Ocorrem consequentemente distúrbios na esfera da linguagem proposicional, sintáxica, instrumento de expressão do pensamento lógico e abstrato agora cindido. Torna-se muito difícil, às vezes impossível, a comunicação com o doente por meio da palavra.
          Nos estados esquizofrênicos frequentemente acontece que noções abstratas sejam substituídas por séries de imagens. Um doente de Kretschmer via brotarem, de conceitos abstratos, jorros de imagens. Werner refere casos de esquizofrênicos que representavam conceitos abstratos por meio de traçados de linhas. Mostra ilustrações desse tipo que correspondem aos conceitos de igualdade, desigualdade, amor.
          Fernando, que frequenta nosso atelier, representa a ambição por linhas quebradas, muito cerradas umas contra as outras. Mostrando-as, disse-me: eu sou ambicioso. Está mesmo doente, numa pintura a que deu o nome de “árvore das emoções”, revelou um código da significação das cores que nos pode guiar no estudo de suas pinturas. Para ele, o amarelo é gloria; o rosa, amor; o branco, ânsia; o marrom, paixão; o azul profundo, ciúme. Sem a pintura, não saberíamos que aquele homem de aspecto humilde e face impassível fosse ambicioso, nem que no seu mundo interno, tivesse raízes a árvore de intensas emoções. (Entre parênteses direi que o estudo da pintura de esquizofrênicos leva o pesquisador a duvidar de muitas coisas lidas nos tratados, referentes à esquizofrenia. Exemplo: embotamento afetivo, apagamento da afetividade, pobreza da ideação, demência. Isso perturba. E talvez seja um dos motivos porque tão poucos psiquiatras interessam-se pela produção plástica de seus doentes).
          A pintura nos informará sobre as alterações da percepção. Revelará se o doente perdeu ou não a capacidade de construir gestalten, se vê as coisas desligadas de seus contextos pragmáticos, misturadas, justapostas, superpostas, num verdadeiro caos. Informará sobre a estruturação do espaço, sobre a maneira como ele apreende o mundo. Se o mundo que vivencia é rígido, estático, ameaçador, instável, sombrio ou colorido. Se predominar a tendência à abstração, como fuga a um mundo hostil ou se manifestam tendências à empatia com as coisas e seres do mundo real.
        A pintura nos permitirá acesso a imagens oriundas das profundezas do inconsciente. Às vezes até parece que essas imagens se projetam nitidamente sobre cartolinas e telas, e que o pintor apenas contorna-as com o seu pincel, tanto elas são vivas e fortes, algumas belas, outras terríveis.

          Como acompanharemos os acontecimentos da travessia por “estados do ser cada vez mais perigosos?” (Artaud). Ainda que o manejo da linguagem verbal permanecesse perfeito, esta linguagem provavelmente seria inadequada para exprimir as vivencias nesses outros estados do ser. Sua esfera de ação é traduzir o pensamento lógico, é construir o discurso. Já na expressão dos sentimentos experienciados mesmo na faixa da normalidade, começam os fracassos da linguagem verbal. Todos os namorados sabem disso. Por este motivo há muitos excelentes prosadores e são raros os grandes poetas líricos. Também os místicos de todas as religiões sempre afirmaram que lhes era impossível dizer em palavras aquilo que haviam vivenciado nos encontros com o Absoluto. Como identificaríamos a gigantesca mulher com cabeça de cão, que perseguia uma de nossas doentes, em alucinações e sonhos, se ela não a houvesse pintado? Como teríamos podido acompanhar a metamorfose de Adelina em flor e o longo e sofrido processo de sua desidentificação vegetal, se ela não o houvesse descrito em imagens?
          Como seguiríamos o labor das forças do inconsciente na formação de símbolos?
          Vermos, por exemplo, passo a passo, a problemática homossexual de um indivíduo ser trabalhada no inconsciente até que fosse conseguida a aproximação das forças em conflito numa imagem única, num símbolo de hermafrodita. Sem a pintura tudo isso nos teria passado despercebido.
          E a angústia de ser espiado de todos os lados por múltiplos olhos? O médico fará ideia muito mais clara dessa situação de seu doente quando representada numa pintura, do que se verbalizada em vagas referencias a perseguidores.
          E a tortura daqueles que vivenciam alucinações corporais, que são cortados em pedaços e desmembrados? Estes nada ou quase nada são capazes de dizer-nos porque o curso de seu pensamento também está partido, porque a linguagem verbal foi desmembrada. Mas a linguagem das imagens subsiste, terrivelmente eloquente, conforme será visto daí a pouco em slides projetados.
          Seria impossível resumir agora o papel do desenho e da pintura na pesquisa psicológica e psiquiátrica.
         No campo da psicologia infantil é aceita, sem contestação, a importância do desenho que por si só fornece indicações sobre a idade mental da criança e, sobretudo sobre sua vida afetiva e seus conflitos. Os desenhos e pinturas imaginativos, sempre ricos de simbolismo, são muito utilizados na psicanálise infantil. Lembremos, com respeito, os trabalhos de Sophie Morgenstern. Noutra posição, F. Minkowska deixa de lado o conteúdo dos desenhos para investigar a maneira como a criança vê o mundo, seu contato com o ambiente. Suas pesquisas sobre o desenho infantil (junto a elementos obtidos pelo teste de Rorschach) foram elaboradas por E. Minkowski que, a partir desses dados, descreveu dois tipos constitucionais: o tipo racional e o tipo sensorial, propondo uma nova tipologia.
          Vários testes psicológicos, conforme sabemos, fundamentam-se no desenho. Basta lembrar o teste da árvore de Koch.
          No âmbito da psiquiatria cresce cada vez mais o interesse pela expressão plástica dos psicóticos, utilizada para esclarecimento diagnóstico, controle da evolução dos casos clínicos, meio para compreensão da psicodinâmica das vivencias mórbidas, como expressão do oculto, do não verbalizado. A bibliografia referente ao assunto é extensíssima; chega mesmo a desanimar às vezes os mais entusiastas apaixonados deste campo de pesquisa.
          Há notáveis estudos sobre as peculiaridades do estilo da pintura de esquizofrênicos (trabalhos de Ferdière, Kries, Baynes, etc.). Mas a maioria das publicações refere-se a descoberta de conteúdos do inconsciente por intermédio do desenho e da pintura.

          Lembremos, por fim, muito de passagem, o encontro entre as pesquisas modernas sobre linguística e as pesquisas relativas à expressão plástica. Estudos recentes de R. Volmat e Charles Wiart aplicam a analise pictural de esquizofrênicos o método de analise linguística de Jackobson e Halle, que consiste fundamentalmente na oposição entre metonímia e metáfora. J. Bobon investiga correspondências entre formas verbais e formas plásticas, estabelecendo conexões entre neologismos e neomorfismos, entre paralogismos e paramorfismos.
          Verifica-se, pois, que nas mais diferentes escolas psicológicas e psiquiátricas, tanto naquelas que valorizam sobretudo os conteúdos intrapsíquicos, quanto naquelas que dão ênfase maior a análise formal, é unânime a importância atribuída ao desenho e a pintura como meios de acesso aos universos psicóticos.
          Tem sede em Paris a Sociedade Internacional de Psicopatologia da Expressão, que possui um grande arquivo de documentos plásticos, para manejo do qual Wiart e seus colaboradores estabeleceram uma codificação própria. No Instituto C.G. Jung de Zurique existe o Bild Archiv e em Nova Iorque, pertencente à Fundação C.G.Jung, o ARAS (arquivo para pesquisa sobre simbolismo arquetípico). Bild Archiv de Zurique e ARAS de Nova Iorque usam a mesma codificação. É esta codificação que utilizamos nas tentativas de organizar nosso arquivo: o APIS (Arquivo para Pesquisa sobre Imagens Simbólicas), denominação sugerida pela nossa colaboradora, Dra. Marianna Kitayama.
          Se atualmente todos, ou quase todos, aceitam desenho ou pintura na qualidade de meios de acesso aos mundos internos dos esquizofrênicos, a verdade é que ainda não são os que atribuem eficácia terapêutica ao ato de desenhar ou pintar.
          Bleuler toma uma atitude de preocupação. Ele descreve no livro Demência Precoce ou o Grupo das Esquizofrenias: “O objetivo do tratamento da esquizofrenia consiste, falando de um modo geral, em educar o paciente no sentido do restabelecimento de seus contatos com a realidade, em combater o autismo” (p.477). Partindo deste enfoque, para Bleuler, a atividade artística “em casos individuais pode prestar bons serviços mas, devido à ausência da necessidade de contato com a realidade, deve ser cuidadosamente supervisionada”(p.478).
          Herman Simon, outro mestre que eu venero, mostra-se radicalmente contrário à prática da pintura no hospital psiquiátrico. A terapêutica ocupacional de Simon é uma psicagogia. Sua meta é reeducar, combatendo os sintomas. Cada atividade ocupacional será receitada como objetivo específico de opor-se a este ou àquele sintoma. Dentro do seu ponto de vista Simon é coerente quando diz que “não se deve conceder tempo nem dinheiro para a produção esquizofrênica de obras de arte”. “Na minha opinião [é Simon que fala] não se deve prescrever nem mesmo apoiar ou tolerar uma atividade que coincida com a direção anormal das ideias de um doente” (p.35)
          Felizmente, durante o mesmo período em que Simon pontificava em Güttersloh, noutro hospital da Alemanha, em Heildeberg, os doentes gozavam da liberdade de pintar e de esculpir. O estudo das pinturas de Heildeberg motivou o livro de Prinzhorn, publicado em1922 e ainda hoje considerado uma das obras mais profundas dedicadas à atividade artística de psicóticos.
        Entretanto, o certo é que, até o momento presente, prevalecem as opiniões contrárias ao valor terapêutico da expressão plástica. Mayer-Groo encarece a importância da pintura espontânea como instrumento de investigação, mas contraindica-a como meio terapêutico. “Desenhando ou pintando, (diz Mayer-Gross), o esquizofrênico tende a mergulhar cada vez mais nas suas fantasias mórbidas” (p.282).
          F.Reitman que em dois livros, Psychotic Art e Insanity, Art and Culture, estudou a expressão plástica de psicóticos, considera “imenso seu valor diagnóstico”, porém nega-lhe qualquer validez terapêutica. A produção plástica se lhe afigura sempre “tentativa de adaptação do doente a uma apreensão distorcida da realidade.”.
          O mesmo argumento é sustentado por J.H. Plokker em livro recente intitulado Auto-Expressão Artística nas Doenças Mentais. Lê-se na página 120: “Se é permitido a um esquizofrênico pintar livremente, ele se submergirá ainda mais nos seus pensamentos e ficará ainda mais afastado da realidade, mais absorvido nos seus delírios e mais influenciado por suas alucinações”.

          Estando eu em área oposta, isto é, atribuindo eficácia terapêutica ao desenho e a pintura, sigo sistematicamente o conselho de Darwin: tomo cuidadosa nota das opiniões contrarias a opinião que eu adoto. Esta é a “regra de ouro” de Darwin. Ele observara que esquecia facilmente as contradições as suas teorias. Para evitar isso registrava-as por escrito, escrupulosamente.
         Continuemos.
          De certo a psicanálise não toma posição de combate direito contra os sintomas. Seu método terapêutico consiste essencialmente em descobrir a dinâmica secreta das manifestações patológicas trazendo a consciência os conteúdos reprimidos no inconsciente, que se apresentam deformados nos sintomas.
          Como conseguí-lo?
         Responde Freud: “Restabelecendo, através do trabalho analítico, estes membros intermediários pré-conscientes que são as recordações verbais”. Quanto às imagens (pensamento visual, restos visuais) “constituem meio muito imperfeito de tornar o pensamento consciente”. As imagens teriam, pois, de ser traduzidas em palavras. Sendo assim, compreende-se que a escola psicanalítica freudiana não seja entusiasta da utilização da pintura como terapêutica.
          Para meio de acesso ao mundo interno, ao inconsciente, sim.
          O próprio Freud escreveu um admirável ensaio sobre o quadro de Leonardo da Vinci – A Virgem, o Menino Jesus e Sant”Ana, concluindo que o conjunto de imagens nesta tela resume a história psicológica da Leonardo.
          A partir daí incontáveis estudos psicanalíticos tem sido publicados sobre obras de arte e sobre pinturas de neuróticos e psicóticos, sempre com o objetivo de descobrir conteúdos reprimidos. É nesta perspectiva que funcionam ateliês de pintura anexos a consultórios analíticos.
          O psicanalista Ernest Kries, autor de interessantes explorações no domínio da arte, afirma que “o artista psicótico cria a fim de transformar a realidade; ele não procura comunicação e suas formas de expressão permanecem sempre as mesmas uma vez que o processo psicótico haja atingido certa intensidade” (p.169).
         Na análise dos desenhos de Opicinus de Canastris, artista psicótico na Idade Média, bem assim naqueles de um engenheiro contemporâneo, esquizofrênico, Kries encontra idêntica significação dinâmica: ambos desenhavam para se protegerem das vivências de destruição do mundo real, construindo mundos fantásticos que conseguissem aprender e governar. Os desenhos teriam a função de concretizar, confirmar e reforçar magicamente ideias delirantes. O livro de Kries, que aliás, foi traduzido para o português, apareceu em 1952. Atualmente a posição de muitos psicanalistas é diferente. Assim, por exemplo, Spitz verificou, que na hipno-análise, ao serem atingidos níveis muito profundos dá-se à liberação de reações sensoriais e motoras correspondentes a recordações raramente recuperáveis através da psicoterapia verbal.
          Spitz admite que essas respostas sensoriais e motoras originam-se no mesmo nível do inconsciente que aquelas obtidas pelas atividades plásticas. A pintura, correspondendo, segundo Spitz, ao nível das respostas motoras, permitiria que fossem acted out memórias profundamente regressivas, que escapariam a expressão verbal.
          Noutro campo toma posição C.G.Jung. Jung dá máximo valor a função criadora de imagens. Na sua psicoterapia, desenho e pintura são considerados fatores que mesmo podem contribuir para o processo de auto-evolução do ser.
          Quando o neurótico já está em condições de sair do estado mais ou menos passivo de dependência das interpretações do analista, Jung o induz a ação – isto é, pede-lhe que desenhe ou pinte as imagens de sonho que mais o impressionaram. Não se trata de fazer arte - trata-se, na expressão de Jung, “de produzir uma eficácia viva sobre o próprio individuo”. “Dar forma material à imagem interna, obriga a considerar atentamente cada uma de suas partes que poderão deste modo desenvolver toda a sua força evocadora”.
          Correntemente, a pessoa detém-se sobre as imagens de seus sonhos apenas durante a sessão analítica. Logo depois é absorvida no tumulto cotidiano. As imagens esvaem-se. Outra coisa será tentar captá-las sobre o papel, lutando contra pincéis e cores e tanto melhor quanto maior for o esforço e tempo dedicado a este trabalho. O individuo necessitará cada vez menos de seu analista. Se descobre, por sua própria experiência, que a formação de uma imagem simbólica libera-o de uma condição de sofrimento e o ajuda a galgar outro nível de consciência, torna-se independente por auto-criação, isto é, dando forma a suas imagens internas ele se modela simultaneamente a si mesmo.
          O que acaba de ser dito refere-se a neuróticos e a todos aqueles que buscam o desenvolvimento de sua personalidade, a própria individuação.
          Mas, ainda quando se trata de psicóticos, de esquizofrênicos, Jung continua a atribuir ao desenho e a pintura função terapêutica.
          Por intermédio da pintura “O caos aparentemente incompreensível e incontrolável da situação total é visualizado e objetivado; poderá ser observado a distância pelo consciente, analisado e interpretado. O efeito deste método é evidentemente devido ao fato de que a impressão primeira caótica ou aterrorizante é substituída pela pintura que, por assim dizer, a recobre. O tremendum é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência original e seus ameaçadores efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o terror a distância” (V.3, 260). Muitas e muitas vezes testemunhei essa despotencialização de imagens aterrorizantes, por meio da pintura. Para ser obtido esse efeito, é frequente que a mesma imagem tenha de ser desenhada ou pintada repetidas vezes. Não se trata de estereotipias nesses casos, mas de um difícil trabalho de desgaste da energia de uma imagem perturbadora.
         Ainda o desenho e a pintura permitem ao doente dar forma as forças defensivas que se opõem à dissociação. Forcas autocurativas manifestam-se de maneira instintiva quando a psique se desorganiza. O sistema psíquico não diverge nisso de todos os outros sistemas biológicos. Uma vez rompido seu equilíbrio, tende a recuperá-lo. Assim, impulsos defensivos, por necessidade instintiva, buscam aproximar opostos em conflito e lançar pontes sobre cisões que parecem irreparáveis.
          As forças ordenadoras que se opõem ao caos configuram-se de preferência em imagens circulares dos mais diversos aspectos, mandalas, seja com a presença de um centro em torno do qual elementos dispares tendem a agrupar-se, seja de arranjos concêntricos compostos de representações múltiplas, contraditórias e mesmo inconciliáveis. “Isso é evidentemente uma tentativa de autocura, que não se origina da reflexão consciente mas de um impulso instintivo”, diz Jung.
          O acerto da STOR possui bela coleção de mandalas. Empiricamente constatei a função autorreguladora e autocurativa dessas imagens.
          Não só através da construção de imagens circulares manifestam-se os impulsos de defesa da psique. Desenho e pintura serão usados para retirar do caos objetos significativos, servindo ao doente de instrumento para reestruturar o mundo real. Haverá casos, como aqueles citados por Kries, não duvido em que o desenho seja utilizado para destruição mágica do mundo. Entretanto, em muitos outros casos o doente procura, desenhando ou pintando, reconstruir o mundo real que, para ele, sofreu um verdadeiro abalo sísmico. E nesse ansioso esforço de reconstrução do mundo externo reestrutura simultaneamente seu mundo interno.
          Ainda e não menos importante, é a objetivação de imagens simbólicas. O símbolo é o mecanismo psicológico que transforma energia (Jung). Assim, por meio da formação da imagem simbólica poderão ocorrer transposições de energia de uns conteúdos psíquicos com sobrecarga energética para outros conteúdos, resultando numa mais equilibrada distribuição de energia e passagem de níveis em direção a consciência.
          A pintura dará ao doente que começa a lançar frágeis pontes para o mundo real, oportunidade de utilizar a linguagem emocional das imagens quando ainda é incapaz de comunicação verbal. Surgem então pinturas de fragmentos da realidade carregadas de vivências pessoais intensas. O exercício da linguagem plástica ajuda, nesses casos, ao estabelecimento das comunicações verbais e melhora os contatos interpessoais.
          Esta é a experiência adquirida no atelier de pintura da STOR. Não adianta a pretensão de combater o autismo solicitando o esquizofrênico a pintar naturezas mortas e paisagens reais, segundo prescrevem Plokker e outros autores, se o momento não for oportuno. Estando o doente acossado pela visão de uma imagem interna aterrorizante, será preferível exorcizá-la. No momento exato, se as condições forem favoráveis, ele se dirigirá à realidade por caminhos curtos ou longos. Fora do mundo o homem não existe verdadeiramente. Daí a busca instintiva da “bela realidade” na expressão de Renée, a jovem esquizofrênica tratada por Madame Sechehaye.
          Uma vez por semana, as sextas-feiras, a monitora conduz seus pintores a um morro situado no terreno que cerca o hospital: nesse lugar a natureza é maravilhosa. Lá, quase sempre, espontaneamente, são pintadas paisagens (muitas serão apresentadas neste simpósio). Há, porém doentes que ainda não se acham em condições de reiniciar comunicação com o mundo. O terapeuta devera respeitá-los e manter-se discreto.
          Quando instalei o setor de desenho e pintura, em setembro de 1946, entre as atividades da terapêutica ocupacional, minha intenção era encontrar caminho de acesso aos mundos interiores dos psicóticos desde que as comunicações verbais eram tão escassas e precárias, deixando o médico completamente do lado de fora do muro daqueles mundos fascinantes.
          Assim, foi surpresa e verificação de que o ato de pintar adquiria, por si mesmo, qualidades terapêuticas. No relatório do ano de 1948, escrevi: “Nossa observação cada vez mais confirma que a pintura não só proporciona esclarecimento para processos patológicos, mas constitui igualmente verdadeiro agente terapêutico”. Era uma constatação empírica que continuou a ser confirmada nos anos subsequentes até a data presente.
          Anexo ao atelier de pintura está nosso Museu, cujo acervo sobe a cerca de 80.000 documentos plásticos. Referindo-se a este acervo, escreveu o professor Lopez Ibor, quando nos visitou, no dia 28 de setembro de 1956: “uma coleção artística psicopatológica única no mundo”. O Museu de Engenho de Dentro continuou a enriquecer-se. Em 1969, por curiosa coincidência também no mês de setembro, dia 2, Herbert Pée, diretor do Museu de Arte de Ulm, Alemanha, chefe da delegação alemã a Bienal de S. Paulo, visitou o Museu da STOR, a convite de Almir Mavignier, primeiro monitor do nosso atelier de pintura e hoje professor numa escola de arte de Hamburgo. Escreveu Herbert Pée: “estou profundamente impressionado com as obras de arte que aqui vi – aumentam o acervo artístico do Brasil e o mundo precisa conhecer estas telas e desenhos. O Brasil deveria proteger estas obras. Pertencem as maiores heranças espirituais desta Nação”.




          No Museu da STOR realizam-se sucessivas exposições referentes a temas psiquiátricos ou a casos clínicos. Também ali tem lugar as reuniões semanais do Grupo de Estudos, grupo promotor deste simpósio, o 4a que realizamos.
          Lentamente atingi um dos meus objetivos iniciais: que o Museu fosse um centro vivo de estudo e pesquisa. Agora posso dizer aos jovens estagiários que o frequentam: nosso enorme acervo de nada servira, será coisa morta, se não for estudado. Cabe a vocês esta tarefa que exige ter diante de si muitos anos pela frente. Cuidar, defender este patrimônio. Estudar, desenvolver nossos atuais métodos de pesquisa tornando-os mais sistematizados e precisos, acompanhando sempre o desenvolvimento da ciência que não para nunca. Vocês não perderão o seu tempo. Estas imagens surgidas do inconsciente, do mundo primordial, têm muitas coisas a revelar sobre os dinamismos da vida psíquica e sobre os mistérios da atividade criadora.

    Obras aqui expostas são de CLIENTES/ USUÁRIOS da CASA DAS PALMEIRAS 

 *Conferência feita na abertura do simpósio A Esquizofrenia em Imagens, comemorativo do XXV aniversário da STOR -CPPII, 13 -16 de setembro de 1971.
Publicado na Revista do Grupo de Estudos C. G. Jung
QUATERNIO- 1973 - RJ  pgs. 123 -136.
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