Homenagem à
Mestra NISE DA SILVEIRA
15/02/1905, Alagoas - 30/10/1999, Rio de Janeiro
QUE É A CASA DAS
PALMEIRAS
Nise da Silveira
Desde muitos anos nos preocupava o
fato de serem tão numerosas as reinternações nos nossos hospitais do Centro
Psiquiátrico. Basta dizes que dentre os 25 doentes internados nesses hospitais
por dia, em média, 17 eram reinternações. Infelizmente a situação em 1986 é
quase a mesma: para 28 internações, 16 são reinternações (pelo menos segundo
nossas precárias estatísticas).
(...) Durante vários anos pensei
quanto seria útil um setor do hospital, ou uma instituição que funcionasse como
espécie de ponte entre o hospital e a vida na sociedade. Naturalmente seriam
necessários recursos financeiros dos quais eu não dispunha para que fosse
tentada experiência desse gênero. Conversei sobre o assunto com vários colegas
que, entretanto, não mostraram interesse pelo projeto.
Mas aconteceu que no inicio do ano de
1956 a psiquiatra Maria Stela Braga, recente colaboradora da Seção de
Terapêutica Ocupacional que estava a meu cargo, logo participou
entusiasticamente dessa ideia. Foi ela quem me apresentou à ilustre educadora
Alzira Cortes (viúva do Professor La-Fayette Cortes) que, depois de breve
conversação, sentiu e compreendeu a utilidade do projeto. D. Alzira já havia
cedido a APAE o primeiro pavimento do casarão onde anteriormente havia
funcionado o Colégio Lá-Fayette, na Rua Haddock Lobo. E agora, num gesto de
confiança e generosidade, pôs à nossa disposição, sem qualquer formalidade, o
segundo pavimento daquele prédio.
Logo começamos a elaborar as
normas da nova instituição: Maria Stela Braga, psiquiatra, Belah Paes Leme,
artista plástica, Ligia Loureiro, assistente social, e Nise da Silveira,
psiquiatra. Para isso nos reuníamos no atelier de Belah, e foi ela quem
encontrou o titulo CASA DAS PALMEIRAS, visto que o casarão da Rua Haddock Lobo
possuía em seu jardim de frente um grupo de belas palmeiras. Assim evitávamos
dar à renovadora instituição um nome que de alguma maneira aludisse às doenças
mentais, tão discriminadas socialmente.
Com a presença de alguns psiquiatras
e de numerosos amigos, foi inaugurada a Casa das Palmeiras no dia 23 de
dezembro de 1956. A Casa, instituição sem fins lucrativos, começou a funcionar
imediatamente.
(...) O principal método de
tratamento empregado na Casa das Palmeiras é a terapêutica ocupacional, mas
terapêutica ocupacional num largo sentido.
(...) O objetivo era utilizar a terapêutica
ocupacional, se corretamente conduzida, como legítimo método terapêutico e não
apenas uma pratica auxiliar e subalterna, segundo acontece habitualmente.
(...) Rótulos diagnósticos são, para nós, de
significação menor, e não costumamos fazer esforços para estabelecê-los de
acordo com classificações clássicas. Não pensamos em termos de doenças, mas em
função de indivíduos que tropeçam no caminho de volta a realidade cotidiana.
Nesse sentido visamos coordenar
intimamente olho e mão, sentimento e pensamento, corpo e psique, primeiro passo
para a realização do todo especifico que deverá vir a ser a personalidade de
cada indivíduo sadio. Na busca de conseguir esta coordenação, fazemos apelo às
atividades que envolvam a função criadora existente mais ou menos adormecida,
dentro de todo indivíduo.
A criatividade é o catalisador por
excelência das aproximações de opostos. Por seu intermédio, sensações, emoções,
pensamentos, são levados a reconhecerem-se entre si, a associarem-se, e mesmo
tumultos internos adquirem forma.
Jamais temos a pretensão, está claro,
que nossos clientes realizem obras de alta qualidade artística (o que às vezes
acontece!). Terapeuticamente, o mais importante é que o mundo interno
dissociado tome forma e encontre meios de expressão através de símbolos
transformadores que o aproximem cada vez mais do nível consciente.
A tarefa principal da equipe técnica
da Casa das Palmeiras será permanecer atenta ao desdobramento fugidio dos
processos psíquicos que acontecem no mundo interno do cliente através de
inúmeras modalidades de expressão. E não menos atento às pontes que ele lança
em direção ao mundo externo, a fim de dar a estas pontes apoio no momento
oportuno.
Convivendo com o cliente durante
várias horas por dia, vendo-o exprimir-se verbal ou não verbalmente em ocasiões
diferentes, seja no exercício de atividades individuais ou de grupo, a equipe
logo chegará a um conhecimento bastante profundo de seu cliente. E a
aproximação que nasce entre eles, tão importante no tratamento, é muito mais
genuína que a habitual relação de consultório entre médico e cliente. A
experiência demonstra que à volta a realidade depende em primeiro lugar de
relacionamento confiante com alguém, relacionamento que se estenderá aos poucos
a contatos com outras pessoas e com o ambiente. O ambiente que reina na Casa é
por si próprio, assim pensamos, um importante agente terapêutico.
A Casa das Palmeiras é um pequeno
território livre, onde não há pressões geradoras de angústia, nem exigências
superiores às possibilidades de resposta de seus frequentadores.
Nunca procurou a coleira de
convênios. Optou pela pobreza e a liberdade.
As relações interpessoais formam-se
de maneira espontânea entre uns e outros. Distinguir médicos, psicólogos,
monitores, estagiários, clientes, torna-se tarefa ingrata. A autoridade da
equipe técnica estabelece-se de maneira natural, pela atitude serena de
compreensão, face a problemática do cliente, pela evidência do desejo de
ajudá-lo por um profundo respeito à pessoa de cada indivíduo.
(...) Muitos indivíduos estão
apenas aptos para atividades nas quais cada ato tenha valor próprio e
proporcione prazer imediato. Por esse motivo damos tanta ênfase às atividades
expressivas e lúdicas.
(...) Mas se denominam
especialmente atividades expressivas àquelas que melhor permitem a espontânea
expressão das emoções, que dão mais larga oportunidade para os afetos tomarem
forma e se manifestarem, seja na linguagem dos movimentos, dos sons, das formas
e cores, etc.
A equipe da Casa das Palmeiras está
sempre atenta para ler sem impertinência, ou melhor, apreender, o que
transparece na face, mãos, gestos do cliente. Essa observação, seja nas
atividades individuais ou de grupo, nos parece indispensável para que o cliente
seja conhecido em maior profundeza e torne-se possível uma abordagem
terapêutica mais segura. A emoção de lidar favorece mil oportunidades para
essas observações.
(...) É
curioso que haja sido um filósofo, Gaston Bachelard, quem abriu caminho para a
pesquisa da importância psicológica dos materiais de trabalho. Ele investigou a
atração preferente da imaginação criadora, em escritores e poetas, pelos
elementos da natureza aos quais aqueles se achavam originariamente filiados: ou
seja, que a imaginação procura uma substância de preferência para revesti-se:
fogo, água, ar ou terra. Assim, revelam “segredos íntimos” (La terre et les
rêvéries de la volonté). Bachelard, baseado nessas ideias, criou um novo tipo
de crítica literária de grande repercussão, sobretudo na França. Mas
transbordou da área da filosofia e da literatura para demonstrar a significação
dos elementos da natureza na vida, no trabalho do homem normal e mesmo seu
valor curativo para os distúrbios emocionais. “A saúde de nosso espírito está
em nossas mãos”, escreve Bachelard (La terre et les rêvéries du repos): isto é,
na manipulação dos elementos da natureza que convêm à nossa condição
psicológica.
O psiquiatra Paul Sivadon teve o
mérito de trazer para o campo da psiquiatria as ideias de Bachelard e de aplicá-las
à terapêutica ocupacional.
(...) Outra maneira de ver a terapêutica
ocupacional que poderá conduzir a aprofundamentos teóricos terá como ponto de
partida a psicologia junguiana.
Jung, ele próprio, nunca explana
diretamente qualquer teoria sobre este método terapêutico. Mas sua psicologia
está impregnada de atividade e foi a partir de suas ideias que, principalmente,
nos inspiramos.
Jung estuda a correlação entre
imagens arquetípicas e instintos, pois, diz ele, não há instintos amorfos, cada
instinto desenvolvendo sua ação de acordo com a imagem típica que lhe
corresponde. Por que então deixar de utilizar a observação dos impulsos
arcaicos que, não raro, irrompe nas psicoses e assim apreender às imagens as
quais se acham interpenetrados, imagens essas que constituem a chave da
situação psicótica de cada doente?
(...)
Foi o que fez Jung nos seus estudos psiquiátricos. A terapêutica
ocupacional muito lucrará em aplicar esses estudos em profundeza e estendê-los
no seu campo de trabalho.
Ainda outros dados. A psicoterapia
junguiana tem por meta não só a dissolução de conflitos intrapsíquicos e de
problemas interpessoais, mas favorece também o desenvolvimento de “sementes
criativas” inerentes ao indivíduo e que o ajudam a crescer. Acontece que é
justamente em atividades feitas com as mãos que, muitas vezes, se revela a vitalidade
dessas “sementes criativas”, segundo presenciamos na Casa das Palmeiras.
Nos neuróticos esse fenômeno se
apresenta frequentemente. Jung escreve: “Se houver alto grau de crispação do
consciente, muitas vezes só as mãos são capazes de fantasia”. Quando o ego não
se acha muito atingido, a teoria das quatro funções de orientação da
consciência no mundo exterior: pensamento, sentimento, sensação, intuição, se
bem utilizadas em atividades que as mobilizem de acordo com suas deficiências,
poderá ajudar bastante o individuo a obter melhor equilíbrio psíquico.
Parece-me que a psicoterapia conceda
ainda muito pouco valor à ação orientada com objetivo terapêutico. Despreza um
belo campo de pesquisa.
(...) Mas a Casa das Palmeiras
prossegue sua caminhada. Completa agora em 1986, 30 anos de existência.
Referência:
Casa das Palmeiras - A Emoção de
Lidar, Uma Experiência em Psiquiatria. Coordenado por Nise da Silveira. Ed. Alhambra, 1986
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