O olhar da poesia
Pela multiplicidade de olhares possíveis, escolhi falar do diálogo na interface
Literatura/Loucura/Artes Plásticas. Daí, em rápidas pinceladas, fiz três
recortes, tendo a poesia como fio condutor: “O olhar na Casa das Palmeiras”, “O
olhar do poeta”, “O olhar de Van Gogh”.
1ª parte: O olhar na Casa das Palmeiras
– Grupo de Poesia
Faço o primeiro recorte para comentar a Poesia na Casa das Palmeiras.
O grupo se reúne na quarta
segunda-feira de cada mês. Além da presença dos clientes, contamos com a
participação de estagiários e, eventualmente, de coordenadores de outras áreas
e do presidente da Casa.
Em abril de 2004, participei, pela primeira vez, como coordenador do
Grupo de Poesia, dando seguimento à atividade.
A cada reunião, distribuímos,
aos participantes, algumas laudas digitadas, quase sempre contendo fotos e
pequenas biografias dos poetas que vamos estudar, junto com alguns dos seus
textos mais representativos. O coordenador lê as biografias e faz comentários,
incentivando a participação. As poesias são lidas por todos os presentes, que,
em diálogo com o coordenador, fazem suas observações. Os clientes são motivados
a dizer se gostaram ou não e por qual razão. Tentam responder à célebre e
irrespondível pergunta: O que será que o poeta quis dizer?
Vamos chamando a atenção para
alguns tópicos que abordamos de forma bem simples, objetivando o entendimento
de todos: Rimas, Métrica, Ritmo, Formas fixas,
entre outros.
Uma palavra ou trecho de um poema é escolhido para que cada cliente faça
o seu poema: é o “tema do dia”, já presente em parte do material distribuído (exemplos:
“Amigo”, “Céu”, “Espelho”, “Nuvem”, “Sonho”, “No meio do caminho tinha uma
pedra”); algumas vezes uma imagem serve de tema, como um desenho, uma
fotografia etc.; em muitas ocasiões a escolha fica a critério do grupo.
Ao final, é dado um tempo (em torno de 10 a 15 minutos). Eles escrevem,
e depois cada um lê o seu texto. Ao analisá-los, buscamos o envolvimento de todos,
incentivando para que comentem o próprio trabalho e também o do outro.
Os trabalhos são assinados,
datados e arquivados na Casa, ficando disponíveis para pesquisas e com
possibilidade de auxílio a tratamentos futuros.
Algumas vezes, convidamos um
poeta para fazer palestra. Já estiveram conosco Afonso Henriques Neto,
Geraldinho Carneiro, Eduardo Tornaghi, Antonio Carlos Secchin, Suzana Vargas,
entre outros.
A Atividade, como um todo, visa fazer com que os clientes se expressem,
se comuniquem, seja por escrito ou verbalmente.
Nesses 10 anos de convivência, lidando com pessoas com maior ou menor dificuldade
para se expressar, pude constatar que o cliente
da Casa não difere muito de outras pessoas. Concentra-se na hora de escrever seus
textos; alguns fazem ótimos poemas, outros produzem encantadoras mensagens em
prosa e até, com certa frequência, desenhos bem elaborados, demonstrando grande
sensibilidade. E é essa sensibilidade que faz com que ele se
comporte, frente à Poesia, da mesma maneira que o poeta.
De modo geral, o cliente
da Casa tem o olhar e o sentimento que o poeta precisa ter, às vezes traduzindo
o ambiente que nos cerca, o exterior, e num outro momento, mergulhando no seu
mundo interior para se expressar singularmente.
2ª parte: O olhar do poeta
Cabe a pergunta: Como ocorre o
processo de criação? Uma palavra, um filme, um acontecimento de rua, um cheiro,
um livro, um quadro: o acaso, a emoção, o espanto, uma dor, a magia do olhar.
Tudo pode disparar o processo.
Muitas vezes, o poema é a tentativa de capturar as imagens. O poeta olha
as coisas como se apresentam e imagina como poderiam ser.
Aqui, faço um recorte para falar de dois poetas: Gullar e Drummond.
Ferreira Gullar, poeta, cronista, dramaturgo, crítico de arte, tradutor e
biógrafo de Nise da Silveira, disse na introdução de seu livro Relâmpagos (na capa, foto do rosto do autor,
destacando o olho): “Toda obra de arte atinge nosso olhar como uma inesperada
fulguração, um relâmpago. Atrevi-me algumas vezes a tentar fixar esse relâmpago
em palavras”. Na página 142, ele nos dá um exemplo de Literatura dialogando com
Artes Plásticas. Olhando para uma tela do pintor mineiro Carlos Bracher,
escreveu o poema:
Pintura
Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos.
Carlos Drummond de Andrade tem vários trabalhos com o tema Artes
Plásticas. Um exemplo interessante é o conjunto de 21 poemas intitulado Quixote e Sancho, de Portinari. Os
textos foram compostos para acompanhar os desenhos executados por Cândido
Portinari, que compõem o álbum Dom Quixote, inspirado nas aventuras do
famoso cavaleiro andante.
Do diálogo entre Cervantes, Portinari e
Drummond, cria-se um olhar circular, se é que podemos dizer assim, sobre o
conjunto Literatura/Artes Plásticas/Literatura.
Destaco o poema XI:
Disquisição
na insônia
Que é loucura: ser cavaleiro andante
ou segui-lo como escudeiro?
De nós dois, quem o louco verdadeiro?
O que, acordado, sonha doidamente?
O que, mesmo vendado,
vê o real e segue o sonho
de um doido pelas bruxas embruxado?
Eis-me, talvez o único maluco,
e me sabendo tal, sem grão de siso,
sou ― que doideira ― um louco de juízo.
3ª parte: O olhar de Van Gogh
Depois de passar rapidamente pelo olhar múltiplo do poeta Ferreira
Gullar, pelo do gênio Miguel de Cervantes, pelo do grande pintor Cândido
Portinari e pelo do maior poeta brasileiro Carlos Drummond de Andrade, chego ao
“Olhar de Van Gogh”. Também aqui fiz uso do recorte para dialogar com a visão,
ou melhor, com os olhares de dois escritores sobre o olhar de Van Gogh: José
Castello e Antonin Artaud.
Quando esta folha ainda estava em branco, perguntei a mim mesmo: o quê e
como falar de Van Gogh?
Que Van Gogh nasceu em 1853 e suicidou-se aos 37 anos de idade, é apenas
uma informação já tantas vezes divulgada. Que tinha um olhar privilegiado, todo
mundo sabe. Que foi um gênio das Artes Plásticas e nas suas pinturas nos legou
poesia no mais puro estado, também não é novidade. Então, como falar de Van Gogh, em pleno século
XXI, quando tudo, aparentemente, já foi dito sobre ele? E, ainda mais, neste
curto espaço de tempo (20 minutos). Tinha que ser alguma coisa nova ― quase uma
impossibilidade ―, nem que fosse uma ficção, e foi. Por acaso, e o acaso
existe, encontrei na coluna do José Castello, no Caderno Prosa, do Globo, de 24/05/2014 o texto “Nasce Van
Gogh”. Com ele, Castello tenta responder a algumas questões: Como nasce a arte?
De onde veio a pintura de Vincent Van Gogh? De qual empurrão, de qual susto? Perguntas
que muitos de nós frequentemente nos fazemos.
O colunista se debruça sobre o livro Todas
as cores do mundo, do jovem escritor italiano Giovanni Montanaro, que eu
nunca tinha ouvido falar, mas que agora se junta ao quarteto Gullar, Cervantes,
Portinari e Drummond. E a história me encantou. É um romance, narrado na
primeira pessoa, em forma de carta ao pintor holandês escrita pela jovem Teresa
Senzasogni, que traduzido seria Teresa Sem Sonhos. Ela herdou o nome da mãe,
que não conseguia dormir, nunca dormia, e por isso passou a ser chamada de Sem
Sonhos.
Teresa vivia na pequena cidade de Gheel, no norte da
Bélgica, uma vila de 3 mil habitantes, dos quais cerca de mil eram loucos. As
famílias foram incentivadas a adotar os loucos para lhes dar um destino.
Teresa, ela própria filha de uma mulher considerada louca, e embora
absolutamente lúcida, é adotada pelos Vanheim. Para facilitar os procedimentos
de adoção, os pais atestam sua suposta loucura.
E como Van Gogh entra na história? Assim: por acaso, vagando pelo campo,
um dia, sem querer, ele chega a Gheel. Naquela tarde, era esperada a chegada de
um novo louco. Um acidente na estrada impediu, porém, que ele prosseguisse
viagem. O jovem Van Gogh toma seu lugar. Ela, aos 16 anos, conhece Vincent.
Castello nos diz: “Por ele se apaixonou e, por força desse amor, o levou a
trocar seus desenhos escuros pela arte luminosa e cheia de cores que hoje
conhecemos”. Digo eu: mudou o olhar.
Continua o colunista: “Teresa percebe a sua genialidade, mas também o
passo que falta para chegar até lá”. A jovem confessa ao amigo: “Eu me espanto
com a quantidade de cores que existem”. E o convence a experimentá-las ―
levíssimo empurrão que impulsiona Van Gogh para sua arte. Ela lhe dá a primeira tela e o primeiro
conjunto de tintas coloridas. Vincent diz: “Você é bem estranha, Teresa”. Ela
reage: “E o senhor?” Van Gogh medita calmamente: “Não me importo por ser
estranho”. A jovem conclui: “Eu também não. Percebe como somos iguais?” Teresa
lembra que lhe disse: “Em minha opinião o senhor será pintor”.
Castello nos diz: “O que há
de mais comovente na história de Giovanni Montanaro é a inocência”. Teresa, mesmo sem saber, impulsiona Vincent
para o seu destino. Leva-o a descobrir que o importante não é reproduzir a
natureza, mas pintar aquilo que se descortina em sua mente. Nas entrelinhas,
percebe-se que Teresa tem o olhar voltado para as coisas mínimas do afeto. Van
Gogh declara: “Não me importa que a cor seja exatamente aquela que vejo, desde
que fique bonita na tela, tanto quanto na natureza”. E é assim que ele consegue,
com sua genialidade, colocar uma poesia visceral em suas pinturas.
Trazendo o olhar do artista para o primeiro plano, José Castello consegue
responder à pergunta inicial, “Como nasce a arte?” Conclui de forma sucinta: “Dessa
ruptura, em que o olhar do artista se torna mais forte que qualquer outro
elemento, a arte enfim nasce”.
E para encerrar minha fala, recorro a Antonin Artaud, um dos maiores
conhecedores da alma do pintor holandês. Poeta, ator, dramaturgo e diretor de
teatro, ele é o autor de Van Gogh: o
suicida da sociedade, traduzido por outro poeta, Ferreira Gullar. O olhar do
pintor atravessa o livro, da capa à contracapa, com a foto de seus olhos, e percorre
todo o texto nas palavras de Artaud. Na página 89, o autor afirma: “O olhar de
Van Gogh é pendente, fixo, ele é vítreo atrás das pálpebras curtas, das
sobrancelhas estreitas e sem nenhuma ruga”.
Volto para a página 88, onde Artaud se indaga e provoca:
“Um louco, Van Gogh?”
Ele mesmo responde:
“Aquele que soube um dia olhar um rosto humano, olhe o autorretrato de
Van Gogh, penso naquele com um chapéu de feltro.
Pintada por Van Gogh extralúcido, esta figura de carniceiro ruivo que
nos inspeciona e espia, que nos perscruta também com um olho feroz.
Não conheço um só psiquiatra capaz de perscrutar um rosto de homem com
uma força tão esmagadora e destrinchá-lo com infalível psicologia”.
E para concluir, o autor cobre de elogios e compara Vincent Van Gogh a um
grande filósofo:
O olho de Van Gogh é de um grande gênio, porém a maneira como o vejo
dissecar-me do fundo da tela em que surgiu não é mais o de um pintor genial
neste momento, mas o de um filósofo que jamais encontrei na vida”.
Casa das
Palmeiras, 7/6/2014
Augusto Sérgio Bastos
uma das belas atividades da casa das palmeiras.saudades, Luciana
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