terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Imagens do Inconsciente

Parte III - texto de Nise da Silveira.
Centenário de C. G. Jung Catálogo da Exposição Museu de Arte Moderna - 1975 - Rio de Jameiro
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A pintura tornará visível a atividade obscura das forças instintivas que se opõem à desagregação psíquica.

Algumas vezes essa atividade exprime-se através da elaboração de verdadeiros rituais, na tentativa do erguer barreiras que detenham as irrupções do inconsciente. Rituais onde contracenam anima e grande mãe; rituais com serpentes, símbolos de perigosas pulsões, rituais de apaziguamento de divindades terrificantes; rituais de sacrifício do animal, isto é da natureza animal do homem; rituais do fogo e da morte. Observe-se na série dos rituais a predominância de símbolos pagãos. Quando aparecem símbolos cristãos acham-se sempre simultaneamente presentes representações de religiões antigas.

Outra maneira muito mais freqüente, de se tornarem manifestas as defesas instintivas que se opõem á desordem da psique será por intermédio de imagens do círculo. Irregulares algumas, outras quase perfeitas, seja que constituam sozinhas o tema da pintura ou apareçam aqui e ali, ao lado de outros motivos, a constância de sua presença fere a atenção do mais desatento dos observadores.

Jung estudou durante muitos anos essas imagens que surgiam espontaneamente em sonhos, situações conflitivas, estados neuróticos, esquizofrenia. E chegou à conclusão de que funcionavam como “círculos mágicos” (mandalas), defesas visando impedir a invasão de conteúdos do inconsciente demasiado perturbadores

O acervo do Museu de Imagens do Inconsciente possui centenas de mandalas dos mais variados tipos. Muitas dentre elas podem ser apreciadas nesta exposição: sob as formas de estrela, semicírculos que se tocam pela convexidade em vez de se fecharem, cruz, espiral, labirinto, derivações do quatro e seus múltiplos, ou do três e do cinco. Visões de conjunto da situação psíquica do individuo. Visões do cosmos, tal a mandala “o planetário de deus”, na denominação de seu autor.

A construção espontânea dessas formas, por mais perturbadas que sejam, visa sempre ordenar elementos díspares ou opostos em torno de um centro, numa mobilização de forças instintivas que tendem a compensar estados de confusão e de dissociação.

Provavelmente perguntar-se-á agora: a objetivação de imagens do inconsciente, por meio da pintura, terá valor terapêutico?

Quando se trata de neuróticos ou de indivíduos normais em trabalho de análise, Jung insiste na importância de ser dada forma às imagens internas pela pintura. Essas imagens “produzem eficácia viva sobre o individuo”, além de facilitarem o indispensável confronto entre consciente e conteúdos do inconsciente no curso do processo de individuação

Entretanto, desde que o ego esteja gravemente atingido, segundo ocorre na esquizofrenia, a situação modifica-se. O campo do consciente é invadido por fatores impessoais carregados de dinamismo extraordinariamente forte que arrebentam as fronteiras do ego e se apossam do individuo. Ele é possuído por esses fatores, vivencia-os, mas não os elabora. O caráter patológico frisa Jung, não reside nos conteúdos emergentes da estrutura básica de psique (inconsciente coletivo). Estes conteúdos são sempre ”material sadio” (C.W.12,33), Vamos encontrá-los em expressões da alma coletiva como os mitos, os contos de fada, os dogmas das religiões, e também em realizações individuais-obras de arte, concepções filosóficas, teorias científicas.

O que faz a doença é a dissociação do consciente que perde o controle sobre o inconsciente (C.W. 9,39).
Apesar de reconhecer todas essas dificuldades, Jung admite que a pintura possa ter função terapêutica mesmo na esquizofrenia. Em trabalho de 1957 lê-se: “o efeito deste método (pintura) é evidentemente devido ao fato de que a impressão caótica ou aterrorizante é substituída pela pintura que, por assim dizer, a recobre. O tremendum é exorcizado pelas imagens pintadas, torna-se inofensivo e familiar e, em qualquer oportunidade que o doente recorde a vivência e seus ameaçadores efeitos emocionais, a pintura interpõe-se entre ele e a experiência, e assim mantém o terror a distância’ (C.W. 3,250).

Muitas e muitas vezes testemunhamos a despontencialização de imagens aterrorizantes por meio da pintura. Nesta exposição, por exemplo, pode ser vista gigantesca mulher com cabeça de cão (a mãe terrível Hécate), imagem alucinatória que enchia de pavor uma de nossas doentes, pintando-a repetidas vezes, desgastou-se a carga energética de imagem que dentro de algum tempo esvaiu-se. Desintentificações vegetais e animais processaram-se passo a passo em série de imagens. Opostos aproximaram-se, com o resultado de paralelas melhoras clínicas.

Em setembro de 1957 foi organizada uma grande exposição de pinturas de esquizofrênicos, vindas de vários países, por ocasião do 2º Congresso Internacional de Psiquiatria, reunidos em Zurique. Levamos a contribuição de nosso museu que dispunha, naquela data, de um acervo pequeno em relação aos aproximadamente noventa mil documentos plásticos que hoje possui. C.G. Jung foi o primeiro visitante da exposição brasileira. Examinou as imagens vindas de terra tão distante e comentou-as com o mais vivo interesse

Assim, é um privilégio para o Museu de Imagens do Inconsciente apresentar ao público, nos salões do Museu de Arte Moderna, quando se comemora o centenário de nascimento do mestre, esta coleção de imagens pintadas livremente num hospital psiquiátrico do Rio de Janeiro, documentação crua, sem qualquer retoque ou influência cultural, e que por isso mesmo confirma, evidencia, suas descobertas referentes à estrutura básica da psique.
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O negrito é nosso. Serve apenas para sinalizar a imensa importância que Nise dava ao mundo das Imagens, as expressões plásticas e estudos científicos das mesmas.
Observem que Nise nunca usa a palavra Arte. Não tinha pretensões de formar artistas, mas sim de dar oportunidade aos seus clientes de se expressarem plásticamente de forma espontânea. Muitos se revelaram artistas por consequência natural.
Todo ser humano é potencialmente um criador. O essencial é dar oportunidade ao inconsciente se revelar em imagens.
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