Nise da Silveira
A psiquiatria foi o ponto de
partida de C. G. Jung. E permaneceu objeto constante de suas cogitações. Com
efeito, aos 32 anos publicou um livro com o significativo título de A Psicologia da Demência Precoce (1907)
e um de seus últimos trabalhos foi apreciação de conjunto sobre a Esquizofrenia
(1957), quando constava 82 anos de idade. Entre estes dois marcos capitais
distribuem-se numerosos estudos referentes à esquizofrenia, que se acham
reunidos no 3º volume de suas Obras Completas.
(...)
A. A. Brill, freudiano ortodoxo, tradutor da
edição inglesa de Psicologia da Demência Precoce, classifica este livro
“pedra angular da moderna psiquiatria interpretativa”.
Já em Psicologia da Demência Precoce e Conteúdo das Psicoses ressaltam características marcantes do
pensamento junguiano quanto à vida psíquica em geral. Se Jung dá o máximo de
esforço para desvendar as significações encerradas nos desafiantes sintomas da
esquizofrenia, não o faz só por curiosidade científica. Ao mesmo tempo acentua
que as múltiplas manifestações da doença se originam de atividades psíquicas
comuns a todos os seres humanos, apenas liberados de freios e formuladas sob
forma simbólica na loucura.
Na última página de Conteúdo das
Psicoses, escreve: “Nós, pessoas sadias, com os dois pés na realidade, vemos
somente a ruína do doente neste mundo, mas não enxergamos as riquezas da face
da psique voltada para o outro lado”. E adiante, continua:“Embora estejamos
ainda longe de conseguir explicar todos os entroncamentos daquele mundo
obscuro, podemos afirmar com segurança completa que na demência precoce não
existe sintoma alguma sem base psicológica, sem significação. Mesmo as coisas
mais absurdas são símbolos de pensamento não só compreensíveis em termos humanos,
mas que habitam também o íntimo d e todos nós. Na loucura nada se descobre de
novo e desconhecido: estamos olhando os fundamentos de nosso próprio ser, a
matriz dos problemas nos quais nos achamos todos engajados” (3). Se esta
posição fosse aceita pela psiquiatria, evidentemente daí decorreriam mudanças
totais na relação médico-psicótico e o tratamento psiquiátrico tomaria rumos
novos.
(...)
Já que os
conteúdos típicos do mundo subterrâneo psíquico são sempre “material sadio, convém sublinhar que a palavra psicopatologia,
em linguagem junguiana, refere-se ao comportamento autônomo desses conteúdos, à
intensidade excessiva de sua carga energética, à violência entra os opostos
peculiares à estrutura básica da psique, à maneira como se contaminam entre si,
às mil formas de suas recíprocas associações. E sobre tudo ao avassalamento do
consciente por tais conteúdos, situação que perturba gravemente o contato com a
realidade.
A psicopatologia junguiana é “uma ciência
que mostra aquilo que está acontecendo na psique durante a psicose” (22).
Note-se, entretanto, que Jung nunca usa a expressão psicopatologia da esquizofrenia, mas escreve constantemente psicologia da esquizofrenia. Já seu
primeiro livro (1907) tem o título de Psicologia
da Demência Precoce. Nas Memórias Jung diz que, escrevendo aquele
livro, seu objetivo “era mostrar que os delírios e alucinações não eram sintomas
específicos da doença, mas também tinham uma significação humana” (23).
Nos
escritos posteriores continua empregando a expressão psicologia da esquizofrenia.
Em Conteúdos das psicoses demonstra que todas as manifestações da
esquizofrenia, delírios, estereotipias, etc., são susceptíveis de compreensão
psicológica do mesmo modo que os sonhos de neuróticos ou de pessoas normais. O
que varia é a complexidade da trama de elementos e a dificuldade de separar
fios condutores dentro do emaranhado de fragmentos de dramas arcaicos dos quais
somos de uma ignorância lamentavelmente quase total.
Em resumo, segundo Jung, será necessário
“para compreender a natureza das perturbações psíquicas situá-las dentro do
contesto da psique humana como um todo” (24).
1 – Jung, C. G. - C. W. 3.
2 - Jung, C. G. – Memories, Dreams, Reflections, p. 146
Panthon Books, New
York, 1963
3 – Jung, C.
G. – C. W. 3 p. 178
22– Jung, C. G. – 18, p. 353
23- Jung,
C. G. - Memories, Dreams, Reflections,
p. 110
Pantheon Books,
New York, 1963
34 -Jung, C. G. 9, p. 55.
Fonte bibliográfica:
Grupo de Estudos do Museu de Imagens do
Inconsciente.
Apostila / 1º semestre de 1980 - RJ - pgs.65-72
Nota: Observa-se que Nise lia as obras de Jung na língua inglesa. As traduções para o português década de setenta em diante. Obras completas, Editora Vozes, Petrópolis, RJ.
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