Matéria de 14.12.1974 – O Globo
O fato é que nos dias que correm, no mundo inteiro, as obras de Jung saem da névoa dos preconceitos e resistências e saem também dos verbetes (sim, porque verbete embora útil é fogo: reduz uma obra ou uma vida a dez linhas de frases corretas, mas gerais sobre o cara, tipo: Jung: discípulo dissidente de Freud que com Adler adotou a base das teorias daquele, mas discordou quanto ao conceito de libido.... e vai por aí a fora sem que a gente fique sabendo a extensão real de seu pensamento), ganhando o entendimento de amplas faixas.
Isso, aliás, é clássico. Qualquer pessoa na frente de seu tempo, ou sabe que vai morrer meio na pior e continua, porque acredita muito, ou então desiste e cai no “realismo” dos cotidianos e dos contemporâneos, abdicando da capacidade de ver adiante. A angústia é um dado da existência. Ela vem em qualquer dos casos. Mas isso é outro papo.
O que gostaria de analisar é por que Jung é tão apreciado pelos jovens! Gozado: a palavra jung em alemão quer dizer jovem, o que dá, como bem observou meu amigo Arnaldo Riesemberg um nome assim de rei antigo: “Carlos o Jovem”. Não estou pretendendo estabelecer analogias demasiado sutis. Mas que Jung sempre foi um pensamento jovem para seu tempo, inquieto, renovador, alegre (era um homem bem humorado), abrangente e generoso (como a juventude), lá isso foi. Sei lá que influências atávicas vinham através de seus antepassados criadores do sobrenome. Sei lá....
Mas em termos culturais e de comunicação esta analogia do pensamento de Jung com os jovens se dá, sobretudo, num ponto: ao ser o grande desbravador das formas extra-supra-além-racionais, ele abriu as portas tanto da percepção de fenômenos antes bloqueados pelo império absolutista da razão; como do conhecimento mágico, intuitivo e sensorial.
Calma, leitor racionalista de dedo em riste para mim! Manera, amizade! Jung não era contra a razão. Ninguém em sã consciência pode sê-lo. Ela é, afinal, a grande ordenadora do conhecimento, a grande instrumentadora do pensamento. Eu também acho.
O que Jung revelou foi a limitação do pensamento racional vigente até seu tempo, para a obtenção de um conhecimento abrangente e amplo da realidade em todas as suas manifestações, muitas delas no âmbito estritamente mágico, cósmico, emocional, espiritual, sensorial, místico, intuitivo, pré-monitivo, panteísta, primitivo etc, etc.
Liberando o homem ocidental das peias do racionalismo cartesiano, mas usando os recursos decorrentes desta mesma razão edificada por Descartes, mas buscada, defendida e glorificada por vários filósofos antes dele, Jung pôde estabelecer uma ponte com o Oriente, pôde entender as mais antigas manifestações e descobertas dos alquimistas, pôde viver sem conflito sua visão cósmica, pôde conhecer o Deus de sua crença (Jung acreditava em Deus porque aceitava o que lhe manifestava seu próprio lado mágico e místico), pôde, enfim, mostrar que há muito mais afinidades entre religiões e filosofias, do que poderia parecer aos dogmatismos decorrentes de séculos de conflitos baseados exclusivamente no dado racional das coisas.
Ora, os tempos modernos geram uma juventude ávida de um encontro existencial mais profundo consigo mesmo, com a natureza, com o mágico, com o cósmico, com o que seja totalizante. Cansados de embates racionais, ideológicos, políticos, econômicos (todos filhos diretos do cartesianismo). Cansados da produção em série, das estruturas lineares, das racionalizações explicadoras de atitudes, os jovens, por intuição e por sensibilidade, encontram no pensamento de Jung uma esperança de identidade e de abrangência. Não dá para explicar o caos, o sectarismo, o abandono da vida e seus principais valores (isso é a patologia de certos segmentos da juventude). Não! Mas para explicar aquilo que a emoção de há muito já sentiu, aquilo que a intuição de há muito já percebeu, em suma, aquilo que caracteriza novas formas de conhecer, menos exclusivistas, menos esquemáticas e limitadas a apenas uma parte dessa maravilha semi-explorada que é o cérebro humano.